28 de agosto de 2006

Adilson contra a colina





Incontáveis anos se passaram e Adilson apenas conversava sozinho ou com o fantasma imaginário do seu pai, vez por outra conversava com sua vara de pescar. Desde que seu pai se fora ele não via ninguém, nem sentia vontade de conversar, por ali não moravam outras pessoas, eram apenas Adilson e o velho da colina. Ah sim, o velho da colina, era como Adilson chamava o velho que sentava todos os dias (ou quase todos) no alto da colina e ficava observando a estrada. Adilson passava pra ir pescar e o via ao longe, todos os dias no mesmo horário, "que vida idiota esse cara leva? Todos os dias a mesma merda, sentado aí no mesmo lugar olhando pra mim, qualquer dia eu subo a colina e vou perguntar o que ele faz da vida.."
Os dias passavam e Adilson quase sempre olhava pra ele e dizia pra sua vara de pescar: "na volta eu vou subir pra falar com ele, agora vamos correr pro lago senão fica tarde pra pescar.."


Adilson pescava como seu pai lhe ensinara desde pequeno, naquele lago que ficava perto de casa, todos os dias ele acordava cedo e ia descendo a estrada de costas para o sol nascendo, olhando pro chão e observando a estrada clareando e sua sombra diminuindo sobre seus pés, chegava no lago pescava por duas horas e voltava pra casa já sentindo o sol queimando a pele, na volta o velho também estava sentado ali na colina, tinha começado a aparecer por ali desde que o pai do Adilson se fora, e dali pra cá era todos os dias, talvez nem fosse todos os dias, Adilson nem prestava mais muita atenção na colina, mas todas as vezes que desviava o olhar do chão pro alto da colina lá estava o velho, na mesma posição em sua rotina que Adilson ás vezes se negava a acreditar que alguém pudesse viver assim.
"Na volta eu vou lá falar com ele, ás vezes sinto vontade de conversar com alguém"
Mais um dia começava e Adilson descia a estrada pra pescar.

Num dos dias mais frios, Adilson acordou no mesmo minuto, vestiu as botas como de costume e saiu pra pescar, o céu carregado de nuvens fez com que o caminho até o lago permanecesse escuro, Adilson descia a estrada olhando pro chão mesmo sem ver sua sombra projetada, era um dia bem diferente aos olhos de Adilson, mas uma coisa permanecia: o velho da colina, Adilson se espantou com a imagem, era um escuro quase absoluto, o sol encoberto pelas nuvens projetava uma luz amarelada e fraquíssima na colina, mas incrivelmente o velho estava sentado ali no mesmo lugar, ignorando o frio e o escuro, os olhos fixos na estrada ao pé da colina, observava..

Ainda estava escuro quando Adilson, sentando com dificuldade numa pedra á margem do lago, sentiu seus pés deslizarem pra trás e seu corpo cedendo bruscamente, o rosto encontrou o lodo no chão e o joelho esquerdo se abriu num corte ao se chocar na pedra, o cesto de peixes foi rolando até a água e ficou boiando lentamente.. "que cena estúpida.." As solas da bota já não davam mais conta da segurança e isso rendeu um corte no joelho e uma cara pintada de lodo escuro. Sentou se ali mesmo, passou os polegares nos olhos e olhou ao redor, na pedra uma mancha vermelha escura desenhava uma estranha forma de arte abstrata, inicialmente não sentiu nada, nem raiva nem dor física, nem vergonha e nem vontade de rir, não havia ninguém vendo, nem ninguém pra contar a história, o joelho nem doía tanto e o que restava fazer era simplesmente levantar e continuar a vida, foi levantando tateando o chão e de repente a luz começou a surgir lentamente, mas visivelmente prosperando, o sol ia se libertando das nuvens e finalmente pintava a paisagem de amarelo, Adilson viu as imagens tomando mais claridade, vários rastros do recente acidente, a arte abstrata estampada na pedra agora era de um vermelho vivo e brilhante, ao pé da pedra, abaixo da figura estava sua vara de pescar, ponta meio enterrada no chão, o nylon todo embaraçado indo até outro pedaço um pouco longe, era algo pra se preocupar: sua vara de pescar estava quebrada, nem joelho doendo, nem lodo entrando nos olhos, a tragédia estava ali, formando um estranho quadro junto com a mancha vermelha na pedra, sua vara de pescar, eterna companheira estava quebrada e ao olhar já teve certeza que não saberia consertar...


Desnorteado, nem se limpou, nem mesmo se lembrou da cesta de peixes, foi andando pra estrada olhando a vara partida nas mãos sentindo um nó na garganta e o gosto das lágrimas que já escorriam pelo rosto, andava sem olhar o caminho e na verdade nem precisava, ele já estava tão acostumado que podia fazer o percurso de olhos fechados, continuou andando e ao passar pela colina tentou evitar olhar, não queria ver ninguém e certamente o velho da colina estaria lá, mas de súbito bateu uma curiosidade e ele lentamente olhou para o alto da colina, e óbvio, lá estava o velho sentado, mas não foi isso que mais surpreendia na visão, o velho sentado ali nada tinha de novo, mas o que havia de tão absurdamente diferente e mudado era o horizonte atrás do velho, acima da colina, era outro horizonte que Adilson nunca viu, a luz alaranjada do sol pintava metade do horizonte e ia se juntando com um tom rosa que se tornava roxo, azul e depois azul escuro, olhando pra direita o Sol estava tão baixo como Adilson nunca imaginou que poderia estar, parecia tocar o horizonte e podia olhar pra ele sem sentir seus olhos queimarem.
"o que há no horizonte?.. que dia diferente é hoje?.."
Desde que Adilson colocou os pés fora da cama que estranhas coisas aconteciam, estranhas demais que ele jamais imaginara que poderia acontecer com uma pessoa, e agora até a natureza parecia estar mudada, continuou andando pra casa pensando o que faria em seguida.. afinal tudo estava fora dos planos, não pescara e voltava pra casa num horário totalmente diferente, razão pela qual talvez a paisagem se mostrava tão transformada, abriu a porta de casa, o ar era úmido e quente, mais uma nova sensação, o cheiro de podridão emanava mais forte por de trás da porta trancada do quarto do seu pai, ele pensou em entrar lá para procurar alguma coisa que servisse pra remendar a vara quebrada, ou talvez pegar a vara que era do seu pai que certamente estava lá dentro, mas a idéia era ousada demais, nunca tinha entrado no quarto do pai e depois que seu pai morrera isso não mudou, a porta ficou trancada por dentro e apesar de saber da existência de uma chave reserva no armário da cozinha, Adilson nunca se interessou em entrar lá, mas isso era antes...
"o dia hoje está estranhamente diferente.."

Parou á frente da porta e pensou por uns minutos, Adilson segurava a grande chave antiga pendurada na mão direita, aproximou a mão na fechadura, todos os movimentos eram devagar e cautelosos por se tratar de movimentos totalmente inéditos e decisões incertas, aumentava o cheiro de podridão, o cheiro não era sensação inédita, Adilson sabia do que se tratava, a chave girou com dificuldade e um clique ecoou como se tivesse quebrado alguma coisa, no entanto a porta se abriu quase sozinha, rangendo e revelando a cena guardada por trás da porta e cortinas fechadas por incontáveis meses, anos, décadas... Adilson não sabia ao certo quanto tempo havia se passado desde que seu pai morrera, mas a ultima lembrança que ele tinha era do pai doente andando com dificuldade e trancando a porta por dentro dizendo que era hora de partir, Adilson era jovem, mas entendeu o recado, chorou e aceitou o fato de que seu pai morrera naquela noite, não precisava de provas maiores, nem mesmo de provas visuais como essa que se desenhou diante dele nesse momento em que ele empurrou a porta e quase vomitou com a intensidade do cheiro que tomava o quarto, o ar pesado, ratos de vários tamanhos correram de todas as parte do chão, alguns desciam ou caíam da parede, todos íam pra baixo da cama ao mesmo tempo como se fazendo um movimento ensaiado, uma espécie de coreografia desviando das grossas teias de aranha que se estendiam do teto até o chão e Adilson imaginou que se não fosse pelo nojo de dar mais um passo ele poderia usar aquelas teias pra remendar sua vara de pescar, mas a ânsia aumentava, ele corria os olhos pelos detalhes do quarto procurando a vara de pescar do seu pai e logo a avistou, estava num lugar um tanto inconveniente, sobre a cama, mais precisamente com o seu pai, nas mãos dele, ou daquilo que um dia fora seu pai, agora restava sobre a cama um esqueleto putrefato com umas roupas sujas de várias manchas escuras que se estendiam até a cama, a mão esquelética fechada segurando a vara de pescar causava uma estranha ironia naquela visão caótica que não parecia perturbar Adilson, nada daquilo era surpresa pra ele exceto a vasta fauna de pequenos seres que habitavam todos os cantos do quarto, e o ar ia se tornando cada vez mais insuportável, era como se o simples fato de respirar ali já poderia matar rapidamente, levou a palma da mão ao nariz e boca e saiu andando pra trás, ganhou a sala e já conseguia respirar melhor, saiu de dentro da casa e finalmente.. ar puro.




Adilson ainda levava a vara quebrada nas mãos quando desceu a estrada e foi em direção ao lago novamente, percebia agora que era o único lugar pra onde poderia ir, na verdade era o único lugar que conhecia fora sua casa, se pelo menos pudesse pedir ajuda pra alguém que tivesse um jeito de arrumar a vara de pescar.. "Mas quem poderia?.."
E a colina surgiu a sua frente, lá havia alguém além dele num raio de quilômetros: O velho da colina.. Sentado no mesmo lugar como já era de se esperar, Adilson olhou para ele que agora parecia estar sorrindo, não era hora de parar pra pensar no que deveria ser feito, então desafiando costumes de uma vida inteira Adilson começou a subir a colina, e a cada passo ia se aproximando do velho que permanecia imóvel como que esperando ansioso, com aquele sorriso cada vez mais evidente no rosto, o nervosismo de Adilson aumentava.
O que diria? Como o velho reagiria? Estava chegando perto, mais uns passos e Adilson viu que havia algo escrito na camisa do velho, alguma marca de qualquer empresa que Adilson obviamente nunca tinha ouvido falar, mais uns passos, agora encarando o velho nos olhos e de repente algo pareceu estar terrivelmente errado naquilo tudo, Adilson desacelerou o passo, hesitou, mas continuou os passos lentos até paralisar boquiaberto diante do fato mais inacreditável que aquele estranho dia poderia reservar: o velho, eterno observador que eram como olhos da colina sobre a rotina mecânica de Adilson, tal rotina que ele próprio não percebia ao rir do fato de todos os dias ver o velho sentado ali e achar que este homem na colina vivia a vida e a rotina mais estúpida que alguém poderia suportar, não percebia que ele também passava por lá todos os dias no mesmo horário e por isso era capaz de percebê-lo, e num único dia que sua rotina fora quebrada tudo parecia desconfortavelmente diferente aos seus olhos, mas ainda assim algo não mudou: ele, o velho da colina, todos esses anos repousou ali intacto e Adilson percebia que não poderia ser diferente, já que agora subindo a colina percebia o fato: o velho sentado no alto da colina tratava-se na verdade de uma placa, não passava de uma peça de ferro indicando o caminho de uma trilha de mochileiros que levava até algum acampamento perto dali, aos pés da placa o chão era batido como se passasse várias pessoas por lá todos os dias, Adilson sentiu agora que a vida lhe escapava futilmente todos os dias, será que ainda havia tempo pra viver? Quanto tempo tinha? Pra onde iria? Olhou pra imagem do velho sentado que agora parecia estupidamente sem vida, uma seta aos seus pés indicava o caminho pela trilha que ia até mais a frente e depois subia a colina até o outro lado.

Seguiu a trilha com a visão até encontrar o horizonte no topo da colina que novamente se apresentava como um horizonte totalmente novo e promissor, abriu as mãos deixando cair os restos da vara de pescar que agora pareciam sem valor e talvez até representasse a sua perdição, não se conformaria em ter apenas a vara nas mãos até o fim da vida como fizera seu pai, já não podia mais admirar seu pai que agora parecia a lembrança de alguém covarde demais pra se arriscar a subir uma colina sem saber o que tem do outro lado, ou ir até além do lago ou seguir a estrada até o horizonte só pra ver aonde vai dar. Adilson foi subindo a trilha, o topo se aproximava, o coração batia acelerado pela emoção da eminente descoberta e ao ganhar o topo viu o outro lado da colina, paralisou diante da visão de um mundo novo que se estendia diante dos seus olhos, avistou aos pés da colina pequenas barracas de acampamento, pessoas sentadas conversavam e tiravam fotos, na água um grupo de garotas brincava com uma bola colorida e uma delas avistou Adilson parado no alto da colina e acenou para ele, nesse momento todos se viraram e viram Adilson, alguns faziam gestos convidando-o a se aproximar, Adilson hesitou mas logo não sentiu mais medo pois ao olhar lá longe percebeu que havia mais um horizonte totalmente novo pra ele, e a sua direita já era outro... e a esquerda mais um..


23 de junho de 2006

Circular



Capítulo 1
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A sombra veio subindo pela Rua Circular, tornando as casas cinzentas, dando mais um toque de drama à ocasião, a enorme nuvem de chuva parecia saber do ocorrido. A sombra encobriu o amontoado de gente que se movimentava em frente à casa de Alex, alguns dispostos a ajudar, consolar, outros apenas curiosos querendo matéria para as fofocas que durariam meses, meses apenas, na Rua Circular nenhuma lembrança durava anos, tudo era logo esquecido ou aceito, todos se conformavam e voltavam às suas vidas. Mas o assunto em frente à casa de Alex era sobre uma lembrança, a lembrança de 36 anos atrás, quando Alex era criança, os mais velhos moradores da Rua Circular lembraram-se disso, eles mesmo invadiram a casa pra salvar Alex da ira do pai, uns minutos à mais e o velho João teria matado o próprio filho, "um velho de 48 anos, alcoólatra.." era o que todos diziam, muitos diziam também que o fato do Alex ter crescido tão revoltado era por causa da violência do pai. O velho João morreu no dia seguinte á esta surra, muitos disseram que foi castigo de Deus, foi atropelado por um carro que saía da Rua Circular e virava a esquina correndo muito no momento em que ele atravessava distraidamente. João estava indo até a padaria comprar cigarros, teria pedido para Alex comprar, se este não estivesse internado num hospital, todo enfaixado, obra-prima de sua violência do dia anterior.

Quando João deu essa surra em Alex, o herói do dia foi Rubens, o morador da casa da frente, um jovem estudante de advocacia que tinha 20 anos na época. Rubens estudava naquele fim de tarde como de costume, naquela tarde mais do que nunca, pois a prova do vestibular seria no dia seguinte, quando ouviu a gritaria da mãe do Alex, Rubens desceu a escada aos tropeços e passou pela cozinha como uma bala disparada em direção á "João Maníaco", era assim que Rubens chamava o seu "adorável" vizinho da frente, ele realmente não ia com a cara dele, ainda mais depois de um certo dia em que Rubens o viu roubando moedas de um morador de rua que dormia junto com o filho na calçada, Rubens impediu a ação, mas isso lhe garantiu o ódio eterno do vizinho.
Agora ele corria em direção a casa do João imaginando a desgraça, passou o braço por cima do pequeno portão e abriu o trinco, alguns vizinhos também já se aproximavam quando Rubens adentrou a sala, contemplou a cena e estremeceu, diante de tanta maldade, João batia no filho disposto a matar, a Mãe de Alex gritava em pânico, móveis revirados, na mão de João uma garrafa de pinga quebrada, era a arma contra o próprio filho, Rubens investiu contra João, bateu, derrubou, chutou com prazer, os outros vizinhos assistiam tudo paralisado, não se sabia o que era mais chocante, se eram as manchas de sangue pela casa, ou Rubens surrando o velho bêbado, ou talvez Alex imóvel no chão, talvez morto?
Rubens quase perdeu a razão, mas percebeu o que fazia, era desgraça demais pra um dia só, parou, respirou, um tempo pra organizar as idéias e gritou:

- Anda logo! Ajudem o Menino, chamem a ambulância, anda.

Rubens voltou pra casa já era noite, entrou deixando um rastro de água pela casa, seu pai estava sentado na velha poltrona do seu avô, quando viu Rubens todo ensopado com manchas de sangue na roupa, deu um pulo na poltrona.

- Calma, que o sangue não é meu, eu estou bem.. (Falou Rubens, já conhecendo o pai)

- Ufa... Que susto ce me deu, espera aí que eu vou pegar uma toalha, assim ce vai ficar doente, mas o negócio foi tão feio assim? O que aconteceu? (o pai do Rubens falava isso enquanto abria um armário e procurava a toalha)

- É... O João Maníaco ia matar o Alex se eu não tivesse chegado, mas pai... Eu dei uma surra e tanto nele viu... (Rubens falou isso com um sorriso sarcástico).

- Eee. Meu filho, você também né... Não precisava tanto, é louco pra arrumar confusão né? Tá... Também não posso falar nada, na sua idade eu também era assim! (o pai do Rubens falou rindo enquanto entregava a toalha), fez bem meu filho, amanhã a gente pega o safado, ele não vai a lugar nenhum, vamos processar o maníaco e mandar ele pro xadrez rapidinho, agora vai descansar, herói!

Assim era o pai de Rubens, sempre querendo usar suas habilidades do ofício, era um advogado dos bons, só que não era reconhecido. Só pegava casos pequenos de empresas e empregados desentendidos, maridos e esposas enfurecidas, mas bom pagamento nenhum dos clientes podia pagar, ele culpava a aparência e a localização do escritório, logo ele iria criar coragem e abandonar aquele lugar, alugar um desses escritórios enormes e confortáveis, e com garagem também, pois com um escritório desses ia precisar duma boa garagem pra abrigar os carrões importados dos novos clientes que viriam, mas hesitava em mudar de escritório, sentia insegurança, não teve coragem de tentar uma mudança, talvez em respeito ao pai que trabalhou ali até se aposentar, seu pai também fora um advogado, se aposentou e agora passa o dia inteiro dormindo, lendo ou assistindo TV trancado no quarto. Nem mesmo desceu pra olhar a bagunça na rua que ocorreu naquela tarde, provavelmente estava observando pela janela lá de cima enquanto o João espancava o filho.



Capítulo 2
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João perdeu o pai antes da adolescência, não que ele tenha se importado, quando isso aconteceu ele já era revoltado o suficiente, odiava o pai acima de tudo, quem viveu naquela época sabia que ele tinha motivos pra isso, a adolescência de João não foi nada fácil, dúvidas e mais dúvidas, revolta e mais revolta, sem um pai pra lhe ensinar os segredos da vida, também seu avô não estava presente, pois morreu muitos anos antes dele nascer. João também não tinha muito jeito com as mulheres, casou quase que por obrigação porque engravidou uma mulher que mal conhecia, dela nasceu o Alex, um bebê enorme, se dependesse de João ele teria morrido de fome, mas a mãe cuidava bem, todos diziam que o filho era só dela, os vizinhos também gostavam e cuidavam do bebê, até ajudavam a criá-lo, Alex foi crescendo e ficando gordo como o pai, não era nada de obeso, talvez um pouco acima do peso, mas já era suficiente pra ser o tema principal na escola, Alex não tinha amigos, na sala de aula todos gostavam de gozar da cara dele já que ele era o gordo filho do bêbado e chegava na escola cada dia com uma mancha roxa numa parte diferente do corpo, pelo menos os garotos não tinham coragem de bater nele, ".. coitado, nem precisa, o pai dele já faz isso todo dia..". Mas um dia, quando Alex tinha uns 11 ou 12 anos, uns garotos inventaram de atiçá-lo até ele reagir, não há dúvidas de que eles conseguiram, Alex reagiu, reagiu até demais, o arrependimento dos colegas não adiantou, expôs sua ira, mostrou o que aprendeu com o pai, imitou a violência de casa.
Alex expulso da escola, três colegas no hospital. Alex chegava em casa de tarde, já tremia, torcia para não encontrar seu pai, o que faria? Pensava em fugir, pensava em mentir, não adiantaria, era cedo demais pra estar chegando da escola, isso já seria suficiente para o pai, ele sempre batia primeiro e perguntava depois. Alex visualizava a cena, seu pai perguntaria porque estava chegando tão cedo, ele hesitaria, gaguejaria um pouco, sentia medo, mentia, seu pai saberia só de olhar nos olhos, ou talvez por não olhar nos olhos na hora da mentira, aí seria tarde demais, mais uma surra, e ia ser das piores. Alex encontrou seu pai sentado no sofá, dormindo, o braço escorado segurava a garrafa de pinga pendurada do lado do sofá, "nem dormindo o velho solta a garrafa.." pensou Alex. A TV ligada transmitia imagens de uma família feliz jantando, todos reunidos, “que linda ilusão..” pensou Alex, se perguntava se aquilo existia, odiava novelas, uma novela real era sua vida, mas essa não emocionava ninguém, ninguém prestava atenção, ninguém se importava e naquela hora estava pra acontecer um capítulo que ninguém perderia por nada. Alex foi entrando devagar, quando viu a garrafa escorregando, nem mais um passo, arregalou os olhos, a garrafa desceu, primeiro o barulho da garrafa quebrando ecoou, depois um cheiro de pinga barata tomou a sala, o velho João acordou dando um pulo e gaguejando coisas incompreensíveis, parou, apertou os olhos, olhou ao redor tentando entender o que passava, viu o Alex ali parado atrás do sofá, a cara de medo do Alex já dava idéia de coisa errada, João olhou pra garrafa quebrada em meio à poça de pinga, depois olhou pra janela e viu o céu amarelado de fim de tarde, se virou olhando para Alex, e gritou com a voz suja:

- Já em casa essa hora? E essa cara aí de quem aprontou? o que que ce fez dessa vez hein? Seu merda!

Uns minutos depois, a mãe do Alex saía do quarto correndo, temendo a desgraça que encontraria na sala, já tinha acordado com o barulho da garrafa quebrando, mas isso era normal de se ouvir naquela casa, mas os gritos de seu filho, ela tinha que atender, normalmente ela ficava de olho para o João não matar o Alex, mas aquela hora era estranho pois Alex deveria estar na escola.


Capítulo 3
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Alex recebeu a noticia da morte do pai no hospital, não derrubou nenhuma lágrima, sentia-se vingado, estava rindo por dentro, pensava em apertar a mão desse motorista que fez uma obra tão boa pra humanidade, saiu do hospital umas semanas depois com cicatrizes que jamais sumiriam, saiu na cadeira de rodas empurrada por sua mãe, na porta do hospital encontrou o Rubens, seu salvador, mas não se mostrou nem um pouco agradecido, "acho que ele não lembra...", disse sua mãe, mas Alex lembrava muito bem, ele apenas não sabia demonstrar esse tipo de coisa, estava agradecido, mas não era legal com ninguém, odiava quase todas as pessoas, conhecidas ou não.

Alex foi crescendo e esse ódio não melhorou em nada, sentia o peso no olhar das pessoas, na rua, todos apontavam pra ele, falavam dele, tinham pena, isso deixava Alex ainda mais furioso, não tinha amigos porque não conseguia ir falar com ninguém, sentia vergonha, raiva, medo, inveja de todos, até por pessoas de longe que ele nunca tinha visto na vida ele sentia o mesmo, achava que todos conheciam sua história. Aos 13 anos começou a beber no "Bar Circular" que ficava a uns quarteirões de sua casa. Na primeira visita o atendente do bar o recebeu como recebia seu pai, Alex pediu uma dose, o filho do dono do bar que passava um pano no vidro do freezer atrás do balcão comentou baixinho:

- Eita, primeiro o pai bêbado vem aqui, bebe um monte e fica devendo, agora é o filho...

Alex ouviu isso e o fitou com raiva.
O dono do bar bem que pensou em cobrar a dívida, mas teve pena de Alex, pensou: “o coitado do muleque já tem problemas demais pra assumir a dívida do pai bastardo”.

Alex Arranjou um emprego numa oficina mecânica no início da Rua Circular, o dono da oficina, ex-patrão de seu pai, foi até á casa de Alex oferecer o emprego quando ele tinha uns 17 anos, Alex no início odiou a idéia, mas logo se conformou, pelo menos teria dinheiro pra comprar bebida, além do mais o dono lhe ensinaria tudo e ele nem mesmo precisaria ver os clientes, ficaria só lá no fundo consertando carros.

Alex se casou quando tinha uns 36 anos com uma mulher que ele conheceu num bar, uma noite que estava muito bêbado, saiu com ela e a engravidou, 9 meses depois, nascia Denis.


Capítulo 4
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Uma garoa fina começou a cair, logo depois uma trovoada e a chuva caiu barulhenta contra o asfalto da Rua Circular, finalmente os curiosos saíram do plantão em frente a casa do Alex, a última pessoa a sair tinha sido a primeira a entrar, era Paulo, o vizinho, fechou o portão e atravessou a rua correndo, entrou em casa todo molhado. Rubens, seu pai, estava sentado na poltrona lendo um jornal e levou um baita susto quando Paulo entrou puxando a camisa ensopada pra evitar o contato frio com o corpo, Rubens se levantou soltando o jornal e perguntou:

- O que aconteceu lá, Paulo?

- Eita, o negócio foi feio, o Alex Maníaco ia matar o Denis se eu não tivesse chegado á tempo, esse cara não presta, o senhor acredita que outro dia eu vi ele roubando aquele cara que mora na rua com o filho? Muito safado, os coitados dormindo ali na calçada...

Pouco depois Paulo tomou um banho e foi dormir, no dia seguinte, quando foi abrir a porta pra sair e pela janela da sala viu o Alex abrindo o portão do outro lado da rua, esperou, não queria encontrar com ele, Alex abordou um garoto que passava pela rua e falou:

- Oh, moleque! Vai lá comprar cigarro pra mim, eu te dou 50 centavos, vai!

O garoto parecia assustado e com medo de Alex, falou que não podia porque tava indo pra escola, Alex resmungou e falou:

- Tá bom, sai daqui, eu mesmo compro essa merda.
Assim Alex desceu a Rua Circular, mancando, cheio de hematomas no rosto, Paulo pensou: "safado, hoje você vai em cana, meu pai vai dar um jeito nisso". Paulo esperou mais um tempo, abriu a porta e saiu para fazer a prova do vestibular.

23 de abril de 2006

Inseguro





Capítulo 1

Dizem que quando a morte se aproxima você vê toda a sua vida passar diante dos seus olhos, Tommy acreditava nisso - ou pelo menos queria acreditar - deitado há duas horas naquela cama branca em um hospital público de Cerquilho, aquele quarto simples, apenas com uns poucos equipamentos velhos e mais duas camas vazias à sua direita, a luz do sol entrava por uma janela suja mais à frente à esquerda. Se é verdade o que dizem sobre a morte, então Tommy estava aliviado, pois aquele quarto só lhe lembrava um episódio na sua infância, quando ele fora submetido a uma cirurgia que ele próprio não entendia a razão.

Mas o alívio em relação à morte não amenizava em nada a situação, há coisas piores do que a morte, Tommy sabia disso, mas procurava não pensar, tentava ignorar o fato de que não podia sentir nenhuma parte do seu corpo, nem mesmo sentia o tubo de borracha que penetrava sua garganta adentro, também não podia se mover, nem mesmo conseguia falar, apenas mexia os olhos inspecionando os detalhes do quarto. Seu cérebro ele tinha certeza que estava funcionando muito bem, pois tinha plena consciência de tudo e podia lembrar-se de quase tudo.
Tommy tentava não pensar nas cenas terríveis do acidente que há poucas horas lhe deixara naquela situação, lembrava de cada detalhe, mas quando tentava se lembrar dos momentos antes do embarque, era como se não tivesse acontecido, como se simplesmente ele tivesse aparecido.. “dentro daquele maldito ônibus bem na hora que aquele enorme caminhão...” Tommy parou de pensar, não queria mais pensar nisso, pois todo esforço que fazia sempre trazia as imagens do acidente, assim Tommy começou a lembrar de coisas felizes como lembranças da sua infância, quando a vida era muito mais fácil, mas ainda assim ele ansiava em crescer e alcançar a maioridade, sabia agora que a tal maioridade não trazia vantagens alguma, ao invés disso era bem difícil, não havia nenhuma boa lembrança de sua curta vida adulta que valesse a pena lembrar naquele momento.

Tommy odiava hospitais (á muito tempo não entrava em um), porém, na sua infância com os constantes ataques de bronquite Tommy perdia grande parte da sua infância enfiado em hospitais, com crises respiratórias, aguardando em enormes filas, eram sempre hospitais públicos, a família de Tommy nunca tivera uma condição financeira favorável, talvez por isso ele odiasse hospitais, hoje em dia, a bronquite nunca mais aparecera, e além do mais Tommy tinha uma saúde de ferro, apesar da aparência magra e a alimentação desequilibrada, Tommy quase nunca ficava doente, seu único problema (e um dos grandes) era o cigarro.
Tommy era um dependente, fumava excessivamente, não suportava ficar sem cigarros, sabia que ia parar antes dos 30 anos, mas por enquanto nem pensava nisso, gostava de fumar quando esperava, fumava enquanto lia, enquanto andava longas distâncias, quando bebia café, um cigarro de manhã era a melhor maneira de começar o dia em sua concepção.

Tommy imaginou quanto tempo deveria esperar e pensou: “o que eu não daria por um cigarro agora?”

Essa frase, em seu pensamento, pareceu fazer eco, Tommy sentiu uma estranha sensação, fragmentos de imagens da espera na rodoviária começaram a surgir na sua mente, mas logo Tommy estava de novo se vendo dentro do ônibus, então pensou em tentar dormir um pouco, mas era impossível, estava desconfortável apesar de não sentir nada, além do mais, sua mente estava agitada demais, o sol já havia se posto e estava bem escuro, Tommy tentou acalmar a mente, não pensou em nada, após um tempo o sono foi chegando, fechou os olhos, mas ainda assim não conseguia dormir e logo percebeu que sua mente já estava pensando em tudo de novo, principalmente no acidente. Tommy abriu os olhos e começou a prestar atenção em coisas insignificantes, ficou tentando imaginar pra que servia cada um daqueles aparelhos na sua frente do outro lado da sala, desses aparelhos ele podia ver pouca coisa com a fraca iluminação azulada que entrava pela janela.
Capítulo 2

Tommy só percebeu que havia cochilado quando seu sono foi interrompido pelo barulho da porta se abrindo, a luz do quarto foi acesa, um assistente de enfermagem entrou na sala e se pôs ao lado da porta, em seguida o irmão de Tommy entrou apressado, com uma expressão de preocupação, Tommy reconheceu seu irmão se aproximando e aquilo foi a primeira sensação boa desde que acordou naquele hospital, se sentiu feliz e revigorado, Tommy não queria morrer.

Mexendo os olhos, acompanhava os movimentos de seu irmão que se agachou próximo a cama fitando o nos olhos e perguntou meio sem jeito:

- Você... Está bem?

Era inútil! Tommy não conseguia falar, entendia a pergunta, mas simplesmente não conseguia responder, seu irmão percebeu e continuou falando:

- Calma, cara! A gente vai cuidar disso. O médico disse que você só precisa fazer uma tal cirurgia amanhã e aí você vai voltar ao normal.. (o irmão de Tommy fez uma pausa), o único problema é que o médico disse que esta cirurgia só pode ser feita em um hospital particular...

Tommy se desesperou, sabia que sua família não teria dinheiro pra pagar uma cirurgia dessas, seus olhos arregalaram e encheram se d’água, o irmão do Tommy percebendo a situação tentou acalmá-lo:

- Tudo bem, tudo bem! Eu vou conseguir esse dinheiro, o médico falou que uma cirurgia dessas é cerca de mil reais, eu vou conseguir amanhã, eu prometo!

Após isso o irmão de Tommy se levantou depressa dizendo que tinha que ir, se afastou da cama e saiu da sala preocupado e arrependido por ter falado demais.

Capitulo 3

As horas passavam, Tommy via as sombras dos objetos mudarem de lugar lentamente, as nuvens se movendo no céu, Tommy ficou olhando pra uma dessas nuvens por muito tempo, talvez por horas, ele conseguiu ver vários desenhos se formando ali, por uns minutos Tommy apenas via a nuvem, como se nada mais existisse e ele estivesse flutuando bem mais próximo da nuvem agora, viu uma enorme beleza naquela nuvem, percebeu como ela estava longe e como era gigante, já era de tarde e a nuvem havia mudado de cor lentamente, assumia agora um tom rosado em cima e alaranjado em baixo, e o próprio céu tinha esse mesmo tom com um azul claro na linha do meio, Tommy pensou que nunca tinha visto o céu tão bonito, mas logo percebeu que a verdade é que ele nunca tinha olhado para o céu, nunca tinha prestado atenção, sua vida era uma correria, Tommy era cheio de grandes planos para o futuro, prestava atenção em coisas grandiosas, buscava coisas e feitos grandiosos, nunca tinha parado pra olhar pequenas coisas sem importância como uma nuvem no céu quando o sol se preparava pra se pôr.
Tommy desviou a visão da janela e olhou para a parede cinzenta a sua frente, em sua cabeça as idéias e pensamentos rodavam, fragmentos de lembranças, pensamentos de como poderia ter sido diferente, a esperança se esvaia, o desejo de fumar um cigarro oscilava, a frase “o que eu não daria por um cigarro” aparecia como uma voz dentro da sua cabeça, sua própria voz cada vez mais clara e mais próxima, numa dessas vezes ele se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura e perguntando pra si mesmo a mesma frase exagerada típica de um viciado, tentou se controlar, agora já percebia que estava suando um pouco e lagrimas saíam dos seus olhos, pensou em musicas animadas de bandas que ele gostava e esperava poder voltar a ver novamente em um show em alguma casa de shows desconhecida de São Paulo, pensava agora em todos os amigos e pessoas importantes, Tommy percebeu que a vida valia a pena, reclamava da vida constantemente e várias vezes dizia que daria até mesmo a vida por um cigarro, agora se sentia um idiota, queria poder viver pra dizer pra todo mundo o quanto gostava de viver, pra ensinar a todos o quanto a vida vale a pena, queria rever seus amigos e dizer pela primeira vez na vida o quanto eles eram especiais, isso era algo que ele também se arrependia, quase nunca falava o que sentia para os amigos, Tommy agora percebia que podia estar no fim dos seus dias mas tudo que podia contemplar era arrependimento, de repente parou de pensar em todas essas coisas negativas de arrependimento e fim dos dias, “não vou morrer!”, disse pra si mesmo, pensou em tudo que faria quando saísse dali, voltaria pra casa, pra sua antiga casa com sua mãe e seu irmão, pouparia dinheiro para eventuais emergências, pararia de fumar com certeza, isso parecia uma obrigação, Tommy não sabia bem porque, mas pensava pela primeira vez em parar de fumar, como se fosse uma coisa urgente que já deveria ter feito á muito tempo.

A última consideração sobre o dinheiro lhe trouxe uma idéia na cabeça, lembrou-se que todo passageiro vítima de acidente em ônibus de viagem tem direito á uma indenização, é um tipo de seguro obrigatório, isso lhe deu esperanças, mas porque então seu irmão ainda não recebera esse seguro? Teria resolvido todos esses problemas, e Tommy já estaria uma hora dessas repousando após a cirurgia em uma maca confortável em um hospital particular bem caro, Tommy chegou a imaginar lindas enfermeiras jovens em roupas justas lhe trazendo café da manhã e cigarros, mas nada disso tinha acontecido até agora, Tommy imaginou que com certeza sua família já teria procurado a empresa de viação exigindo os direitos, aliás a família de Tommy era verdadeiramente obcecada por indenizações, processos, seguros e todas essas coisas que poderiam lhes dar uma boa grana de uma hora pra outra, porém, nunca tinham conseguido ganhar nada em vários processos (as vezes, sem sentido) que tinham iniciado contra diversas empresas, Tommy lembrou que as grandes empresas sempre levavam a melhor e escapavam de alguma forma das obrigações.
Com esse pensamento a esperança se foi, provavelmente Tommy perdera o seguro por alguma brecha estúpida que a lei sempre deixa pra a classe dominante se aproveitar dos desfavorecidos, contudo, algo perturbava as certezas de Tommy, no seu subconsciente algo dizia que ele sabia muito bem porque o seguro não chegaria a suas mãos e também sabia porque seu irmão não havia voltado pra visitar ele... e nem voltaria.


Uma luz alaranjada entrava pela janela e a sala começou a escurecer, era a segunda vez que Tommy percebia o sol se pondo naquela sala, o mais deprimente é que não havia visto mais ninguém, nenhuma visita, apenas uma velha enfermeira que entrou algumas vezes na sala pra medir sua pressão e alimentá-lo, quanto a seu irmão ele entendia que não era possível que ele aparecesse por lá, pois naquele momento seu irmão certamente estava em algum lugar tentando conseguir o dinheiro pra tal operação, Tommy confiava em seu irmão acima de tudo, lembrou das vezes que seu irmão lhe ajudara e se sentiu um tanto inútil, sabia que se não fosse pelo seu irmão ele já estaria morto ou pior á muito tempo, lembrou da enorme divida e de todas as vezes que precisou de ajuda e seu irmão sempre estava lá, mesmo longe, do outro lado da linha atendendo uma ligação a cobrar e dizendo que iria buscar Tommy de moto, ou que iria emprestar o dinheiro que ele precisava.
Tommy dormiu com mais facilidade naquela noite.



Capitulo 4

Já era quase meio-dia e Tommy acordava de um pesadelo terrível, respirava agitado, as imagens continuavam passando na sua mente como um filme, era o acidente, era como se Tommy estivesse revivendo o acidente no ônibus em cada detalhe, os faróis do enorme caminhão se aproximando da sua janela, a buzina ensurdecedora, ferros se amassando, vidros quebrando numa barulheira infernal, seu braço preso, motores furiosos, imagens distorcidas, a estrada girava, por alguns momentos só se ouvia gritos e choros desesperados, depois tudo escurecia, e de repente Tommy já estava acordando naquele hospital.
Tommy afastou aos poucos essas imagens da sua mente, logo veio a vontade de fumar, aquele bom e velho cigarro acompanhado pelo café quando ele acordava, o que ele não daria por um cigarro? Tommy quase pensou nessa frase, mas de repente algo começou.Uma sensação nova começou nas pernas do Tommy, depois de tanto tempo sem sentir nada, Tommy percebeu um leve formigamento subindo pelas suas pernas, o formigamento avançava rapidamente, à medida que aumentava de intensidade e logo aquilo se tornou um inferno, todo aquele formigamento se transformou numa dor profunda e terrível, subia pelas suas pernas até seu pulmão, tomava também seus braços, Tommy ficou agitado, era difícil respirar, podia se ouvir as batidas do seu coração, alta, forte e rápida, Tommy perdia o fôlego, o ar não vinha, sentiu um frio profundo que lhe chegava até os ossos e ainda assim suava muito, seus olhos derramavam uma enxurrada de lágrimas e agora Tommy tinha certeza, ele estava morrendo, imagens começaram a aparecer na sua mente, como se passasse diante dos seus olhos, Tommy se viu com 7 anos brincando com seu irmão de se pendurar no cano aonde sua mãe amarrava o varal, numa das várias balançadas pendurado ali o pequeno Tommy não agüentou o próprio peso e escapou do cano, caiu, quase que flutuou como que em câmera lenta e quando suas costas iam atingir o chão outra lembrança saltou a frente, Tommy agora tinha 10 anos e estava olhando pela janela do seu quarto, era tarde da noite e o que Tommy via era seu pai com uma mala saindo de casa aos gritos com sua mãe e entrando no carro, o carro arrancou rua abaixo e quando Tommy se virou pra dentro do quarto, se viu com 11 anos chegando numa outra casa, junto com sua mãe e seu irmão mais velho, sua mãe chorava, um flash e outra lembrança veio a tona, Tommy estava bem mais velho agora, barba por fazer, sentado numa maca, uma garota na sua frente segurava seu nariz com uma ferramenta cirúrgica, o Tommy adolescente estava furando seu primeiro piercing, quando a agulha atravessou seu septo, uma outra lembrança, estava agora em um lugar lotado, as luzes piscavam, Tommy se via numa multidão de jovens se empurrando na frente de um palco aonde uma banda tocava agitada uma musica alta, essa lembrança foi sobreposta pela imagem do Tommy colocando umas roupas numa mochila, sua mãe ao lado chorava e incentivava, talvez o momento mais memorável da sua vida, o Tommy adulto estava saindo de casa, queria tentar a vida em outro lugar, sua mãe ao lado chorava e incentivava ao mesmo tempo, logo a imagem sumiu e Tommy se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura, querendo um cigarro, logo ele estava na rodoviária, esperava o ônibus pra São Paulo, era de madrugada, o sol ainda nem começara a nascer, a rodoviária quase vazia, Tommy olhava para os lados procurando alguém que estivesse fumando para pedir um cigarro, mas só havia uns velhos cochilando em um banco, Tommy olhou pra lanchonete da rodoviária, por trás dos vidros estava vazia com as luzes apagadas, Tommy pensou que assim que aquela lanchonete abrisse ele iria comprar um cigarro, mas logo lembrou que estava com o dinheiro da passagem contado e mais R$ 1,10, a imagem dele contando o dinheiro sumiu e veio a imagem da lanchonete e da bilheteria acendendo suas luzes, um homem tomava seu posto na bilheteria enquanto uma mulher varria a frente da lanchonete, Tommy ainda pensando em cigarro foi em direção a bilheteria, tirou o dinheiro trocado do bolso evitando a moeda de 0,10, olhou pra tabela com esperança de que por algum milagre a passagem estivesse 1 real mais barata e assim ele poderia comprar o tal sonhado maço de cigarros, e assim ele viu em linhas pequenas, abaixo da tabela um aviso:

“TODOS OS PASSAGEIROS TEM DIREITO Á UM SEGURO OBRIGATÓRIO NO VALOR DE 2 MIL REAIS EM CASO DE ACIDENTE * ”
O asterisco no fim da frase chamava atenção para uma outra linha ainda menor logo mais abaixo:
“* é direito do passageiro recusar a taxa do seguro incluso no valor da passagem”
Tommy olhou para o atendente e perguntou meio sem jeito:

- Quanto fica se eu recusar a taxa do seguro?

O atendente respondeu meio surpreso, como se aquilo nunca tivesse acontecido antes:



- Han.... fica 0,96 centavos a menos, senhor.
- Então vou recusar!
- Claro, preencha esse formulário.

O atendente lhe deu uma folha com várias lacunas pra preencher como nome identidade, CPF entre outros, Tommy preencheu apressado, assinou e devolveu ao atendente que já lhe entregava a passagem, Tommy deu o dinheiro e recebeu seu merecido troco, era o “milagre” que ele esperava, agora Tommy tinha R$ 2,06 no bolso, essas imagens se distorceram e foram sobrepostas pela imagem do Tommy entrando na lanchonete da rodoviária, nem disse “bom-dia”, encostou-se no balcão colocando a nota de 1 real amassada e as moedas sobre o vidro, o barulho interrompeu a leitura que a atendente fazia sentada atrás do balcão com um pequeno livro, ela se virou olhando as moedas, “me dá um maço de Hollywood, por favor!” Disse Tommy num tom imperativo.

A atendente lhe entregou o maço, Tommy agora estava andando na rodoviária, rasgando o plástico do maço e jogando no chão, encostou-se no parapeito, em frente ao lugar onde seu ônibus chegaria em cerca de 20 minutos, colocou um cigarro na boca com a mesma mão que segurava o maço e com a outra já arrastava o isqueiro pra fora do bolso de trás da calça, acendeu o cigarro, deu uma tragada, agora seus movimentos já eram mais lentos, colocou o isqueiro num bolso, o maço em outro, assoprou a fumaça azulada que se dissipou rapidamente no ar, encostou o antebraço no parapeito e deu outra tragada mais demorada, estava agora mais calmo e sentia que poderia esperar o ônibus por muitas horas com aquele maço de cigarros que ele trocara pelo seu seguro de acidente, soltou a fumaça lentamente no ar e perguntou pra si mesmo: “o que eu não daria por um cigarro?”.