
Capítulo 1
Dizem que quando a morte se aproxima você vê toda a sua vida passar diante dos seus olhos, Tommy acreditava nisso - ou pelo menos queria acreditar - deitado há duas horas naquela cama branca em um hospital público de Cerquilho, aquele quarto simples, apenas com uns poucos equipamentos velhos e mais duas camas vazias à sua direita, a luz do sol entrava por uma janela suja mais à frente à esquerda. Se é verdade o que dizem sobre a morte, então Tommy estava aliviado, pois aquele quarto só lhe lembrava um episódio na sua infância, quando ele fora submetido a uma cirurgia que ele próprio não entendia a razão.
Mas o alívio em relação à morte não amenizava em nada a situação, há coisas piores do que a morte, Tommy sabia disso, mas procurava não pensar, tentava ignorar o fato de que não podia sentir nenhuma parte do seu corpo, nem mesmo sentia o tubo de borracha que penetrava sua garganta adentro, também não podia se mover, nem mesmo conseguia falar, apenas mexia os olhos inspecionando os detalhes do quarto. Seu cérebro ele tinha certeza que estava funcionando muito bem, pois tinha plena consciência de tudo e podia lembrar-se de quase tudo.
Tommy tentava não pensar nas cenas terríveis do acidente que há poucas horas lhe deixara naquela situação, lembrava de cada detalhe, mas quando tentava se lembrar dos momentos antes do embarque, era como se não tivesse acontecido, como se simplesmente ele tivesse aparecido.. “dentro daquele maldito ônibus bem na hora que aquele enorme caminhão...” Tommy parou de pensar, não queria mais pensar nisso, pois todo esforço que fazia sempre trazia as imagens do acidente, assim Tommy começou a lembrar de coisas felizes como lembranças da sua infância, quando a vida era muito mais fácil, mas ainda assim ele ansiava em crescer e alcançar a maioridade, sabia agora que a tal maioridade não trazia vantagens alguma, ao invés disso era bem difícil, não havia nenhuma boa lembrança de sua curta vida adulta que valesse a pena lembrar naquele momento.
Tommy odiava hospitais (á muito tempo não entrava em um), porém, na sua infância com os constantes ataques de bronquite Tommy perdia grande parte da sua infância enfiado em hospitais, com crises respiratórias, aguardando em enormes filas, eram sempre hospitais públicos, a família de Tommy nunca tivera uma condição financeira favorável, talvez por isso ele odiasse hospitais, hoje em dia, a bronquite nunca mais aparecera, e além do mais Tommy tinha uma saúde de ferro, apesar da aparência magra e a alimentação desequilibrada, Tommy quase nunca ficava doente, seu único problema (e um dos grandes) era o cigarro.
Tommy era um dependente, fumava excessivamente, não suportava ficar sem cigarros, sabia que ia parar antes dos 30 anos, mas por enquanto nem pensava nisso, gostava de fumar quando esperava, fumava enquanto lia, enquanto andava longas distâncias, quando bebia café, um cigarro de manhã era a melhor maneira de começar o dia em sua concepção.
Tommy imaginou quanto tempo deveria esperar e pensou: “o que eu não daria por um cigarro agora?”
Essa frase, em seu pensamento, pareceu fazer eco, Tommy sentiu uma estranha sensação, fragmentos de imagens da espera na rodoviária começaram a surgir na sua mente, mas logo Tommy estava de novo se vendo dentro do ônibus, então pensou em tentar dormir um pouco, mas era impossível, estava desconfortável apesar de não sentir nada, além do mais, sua mente estava agitada demais, o sol já havia se posto e estava bem escuro, Tommy tentou acalmar a mente, não pensou em nada, após um tempo o sono foi chegando, fechou os olhos, mas ainda assim não conseguia dormir e logo percebeu que sua mente já estava pensando em tudo de novo, principalmente no acidente. Tommy abriu os olhos e começou a prestar atenção em coisas insignificantes, ficou tentando imaginar pra que servia cada um daqueles aparelhos na sua frente do outro lado da sala, desses aparelhos ele podia ver pouca coisa com a fraca iluminação azulada que entrava pela janela.
Capítulo 2
Tommy só percebeu que havia cochilado quando seu sono foi interrompido pelo barulho da porta se abrindo, a luz do quarto foi acesa, um assistente de enfermagem entrou na sala e se pôs ao lado da porta, em seguida o irmão de Tommy entrou apressado, com uma expressão de preocupação, Tommy reconheceu seu irmão se aproximando e aquilo foi a primeira sensação boa desde que acordou naquele hospital, se sentiu feliz e revigorado, Tommy não queria morrer.
Mexendo os olhos, acompanhava os movimentos de seu irmão que se agachou próximo a cama fitando o nos olhos e perguntou meio sem jeito:
- Você... Está bem?
Era inútil! Tommy não conseguia falar, entendia a pergunta, mas simplesmente não conseguia responder, seu irmão percebeu e continuou falando:
- Calma, cara! A gente vai cuidar disso. O médico disse que você só precisa fazer uma tal cirurgia amanhã e aí você vai voltar ao normal.. (o irmão de Tommy fez uma pausa), o único problema é que o médico disse que esta cirurgia só pode ser feita em um hospital particular...
Tommy se desesperou, sabia que sua família não teria dinheiro pra pagar uma cirurgia dessas, seus olhos arregalaram e encheram se d’água, o irmão do Tommy percebendo a situação tentou acalmá-lo:
- Tudo bem, tudo bem! Eu vou conseguir esse dinheiro, o médico falou que uma cirurgia dessas é cerca de mil reais, eu vou conseguir amanhã, eu prometo!
Após isso o irmão de Tommy se levantou depressa dizendo que tinha que ir, se afastou da cama e saiu da sala preocupado e arrependido por ter falado demais.
Capitulo 3
As horas passavam, Tommy via as sombras dos objetos mudarem de lugar lentamente, as nuvens se movendo no céu, Tommy ficou olhando pra uma dessas nuvens por muito tempo, talvez por horas, ele conseguiu ver vários desenhos se formando ali, por uns minutos Tommy apenas via a nuvem, como se nada mais existisse e ele estivesse flutuando bem mais próximo da nuvem agora, viu uma enorme beleza naquela nuvem, percebeu como ela estava longe e como era gigante, já era de tarde e a nuvem havia mudado de cor lentamente, assumia agora um tom rosado em cima e alaranjado em baixo, e o próprio céu tinha esse mesmo tom com um azul claro na linha do meio, Tommy pensou que nunca tinha visto o céu tão bonito, mas logo percebeu que a verdade é que ele nunca tinha olhado para o céu, nunca tinha prestado atenção, sua vida era uma correria, Tommy era cheio de grandes planos para o futuro, prestava atenção em coisas grandiosas, buscava coisas e feitos grandiosos, nunca tinha parado pra olhar pequenas coisas sem importância como uma nuvem no céu quando o sol se preparava pra se pôr.
Tommy desviou a visão da janela e olhou para a parede cinzenta a sua frente, em sua cabeça as idéias e pensamentos rodavam, fragmentos de lembranças, pensamentos de como poderia ter sido diferente, a esperança se esvaia, o desejo de fumar um cigarro oscilava, a frase “o que eu não daria por um cigarro” aparecia como uma voz dentro da sua cabeça, sua própria voz cada vez mais clara e mais próxima, numa dessas vezes ele se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura e perguntando pra si mesmo a mesma frase exagerada típica de um viciado, tentou se controlar, agora já percebia que estava suando um pouco e lagrimas saíam dos seus olhos, pensou em musicas animadas de bandas que ele gostava e esperava poder voltar a ver novamente em um show em alguma casa de shows desconhecida de São Paulo, pensava agora em todos os amigos e pessoas importantes, Tommy percebeu que a vida valia a pena, reclamava da vida constantemente e várias vezes dizia que daria até mesmo a vida por um cigarro, agora se sentia um idiota, queria poder viver pra dizer pra todo mundo o quanto gostava de viver, pra ensinar a todos o quanto a vida vale a pena, queria rever seus amigos e dizer pela primeira vez na vida o quanto eles eram especiais, isso era algo que ele também se arrependia, quase nunca falava o que sentia para os amigos, Tommy agora percebia que podia estar no fim dos seus dias mas tudo que podia contemplar era arrependimento, de repente parou de pensar em todas essas coisas negativas de arrependimento e fim dos dias, “não vou morrer!”, disse pra si mesmo, pensou em tudo que faria quando saísse dali, voltaria pra casa, pra sua antiga casa com sua mãe e seu irmão, pouparia dinheiro para eventuais emergências, pararia de fumar com certeza, isso parecia uma obrigação, Tommy não sabia bem porque, mas pensava pela primeira vez em parar de fumar, como se fosse uma coisa urgente que já deveria ter feito á muito tempo.
A última consideração sobre o dinheiro lhe trouxe uma idéia na cabeça, lembrou-se que todo passageiro vítima de acidente em ônibus de viagem tem direito á uma indenização, é um tipo de seguro obrigatório, isso lhe deu esperanças, mas porque então seu irmão ainda não recebera esse seguro? Teria resolvido todos esses problemas, e Tommy já estaria uma hora dessas repousando após a cirurgia em uma maca confortável em um hospital particular bem caro, Tommy chegou a imaginar lindas enfermeiras jovens em roupas justas lhe trazendo café da manhã e cigarros, mas nada disso tinha acontecido até agora, Tommy imaginou que com certeza sua família já teria procurado a empresa de viação exigindo os direitos, aliás a família de Tommy era verdadeiramente obcecada por indenizações, processos, seguros e todas essas coisas que poderiam lhes dar uma boa grana de uma hora pra outra, porém, nunca tinham conseguido ganhar nada em vários processos (as vezes, sem sentido) que tinham iniciado contra diversas empresas, Tommy lembrou que as grandes empresas sempre levavam a melhor e escapavam de alguma forma das obrigações.
Com esse pensamento a esperança se foi, provavelmente Tommy perdera o seguro por alguma brecha estúpida que a lei sempre deixa pra a classe dominante se aproveitar dos desfavorecidos, contudo, algo perturbava as certezas de Tommy, no seu subconsciente algo dizia que ele sabia muito bem porque o seguro não chegaria a suas mãos e também sabia porque seu irmão não havia voltado pra visitar ele... e nem voltaria.
Uma luz alaranjada entrava pela janela e a sala começou a escurecer, era a segunda vez que Tommy percebia o sol se pondo naquela sala, o mais deprimente é que não havia visto mais ninguém, nenhuma visita, apenas uma velha enfermeira que entrou algumas vezes na sala pra medir sua pressão e alimentá-lo, quanto a seu irmão ele entendia que não era possível que ele aparecesse por lá, pois naquele momento seu irmão certamente estava em algum lugar tentando conseguir o dinheiro pra tal operação, Tommy confiava em seu irmão acima de tudo, lembrou das vezes que seu irmão lhe ajudara e se sentiu um tanto inútil, sabia que se não fosse pelo seu irmão ele já estaria morto ou pior á muito tempo, lembrou da enorme divida e de todas as vezes que precisou de ajuda e seu irmão sempre estava lá, mesmo longe, do outro lado da linha atendendo uma ligação a cobrar e dizendo que iria buscar Tommy de moto, ou que iria emprestar o dinheiro que ele precisava.
Tommy dormiu com mais facilidade naquela noite.
Capitulo 4
Já era quase meio-dia e Tommy acordava de um pesadelo terrível, respirava agitado, as imagens continuavam passando na sua mente como um filme, era o acidente, era como se Tommy estivesse revivendo o acidente no ônibus em cada detalhe, os faróis do enorme caminhão se aproximando da sua janela, a buzina ensurdecedora, ferros se amassando, vidros quebrando numa barulheira infernal, seu braço preso, motores furiosos, imagens distorcidas, a estrada girava, por alguns momentos só se ouvia gritos e choros desesperados, depois tudo escurecia, e de repente Tommy já estava acordando naquele hospital.
Tommy afastou aos poucos essas imagens da sua mente, logo veio a vontade de fumar, aquele bom e velho cigarro acompanhado pelo café quando ele acordava, o que ele não daria por um cigarro? Tommy quase pensou nessa frase, mas de repente algo começou.Uma sensação nova começou nas pernas do Tommy, depois de tanto tempo sem sentir nada, Tommy percebeu um leve formigamento subindo pelas suas pernas, o formigamento avançava rapidamente, à medida que aumentava de intensidade e logo aquilo se tornou um inferno, todo aquele formigamento se transformou numa dor profunda e terrível, subia pelas suas pernas até seu pulmão, tomava também seus braços, Tommy ficou agitado, era difícil respirar, podia se ouvir as batidas do seu coração, alta, forte e rápida, Tommy perdia o fôlego, o ar não vinha, sentiu um frio profundo que lhe chegava até os ossos e ainda assim suava muito, seus olhos derramavam uma enxurrada de lágrimas e agora Tommy tinha certeza, ele estava morrendo, imagens começaram a aparecer na sua mente, como se passasse diante dos seus olhos, Tommy se viu com 7 anos brincando com seu irmão de se pendurar no cano aonde sua mãe amarrava o varal, numa das várias balançadas pendurado ali o pequeno Tommy não agüentou o próprio peso e escapou do cano, caiu, quase que flutuou como que em câmera lenta e quando suas costas iam atingir o chão outra lembrança saltou a frente, Tommy agora tinha 10 anos e estava olhando pela janela do seu quarto, era tarde da noite e o que Tommy via era seu pai com uma mala saindo de casa aos gritos com sua mãe e entrando no carro, o carro arrancou rua abaixo e quando Tommy se virou pra dentro do quarto, se viu com 11 anos chegando numa outra casa, junto com sua mãe e seu irmão mais velho, sua mãe chorava, um flash e outra lembrança veio a tona, Tommy estava bem mais velho agora, barba por fazer, sentado numa maca, uma garota na sua frente segurava seu nariz com uma ferramenta cirúrgica, o Tommy adolescente estava furando seu primeiro piercing, quando a agulha atravessou seu septo, uma outra lembrança, estava agora em um lugar lotado, as luzes piscavam, Tommy se via numa multidão de jovens se empurrando na frente de um palco aonde uma banda tocava agitada uma musica alta, essa lembrança foi sobreposta pela imagem do Tommy colocando umas roupas numa mochila, sua mãe ao lado chorava e incentivava, talvez o momento mais memorável da sua vida, o Tommy adulto estava saindo de casa, queria tentar a vida em outro lugar, sua mãe ao lado chorava e incentivava ao mesmo tempo, logo a imagem sumiu e Tommy se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura, querendo um cigarro, logo ele estava na rodoviária, esperava o ônibus pra São Paulo, era de madrugada, o sol ainda nem começara a nascer, a rodoviária quase vazia, Tommy olhava para os lados procurando alguém que estivesse fumando para pedir um cigarro, mas só havia uns velhos cochilando em um banco, Tommy olhou pra lanchonete da rodoviária, por trás dos vidros estava vazia com as luzes apagadas, Tommy pensou que assim que aquela lanchonete abrisse ele iria comprar um cigarro, mas logo lembrou que estava com o dinheiro da passagem contado e mais R$ 1,10, a imagem dele contando o dinheiro sumiu e veio a imagem da lanchonete e da bilheteria acendendo suas luzes, um homem tomava seu posto na bilheteria enquanto uma mulher varria a frente da lanchonete, Tommy ainda pensando em cigarro foi em direção a bilheteria, tirou o dinheiro trocado do bolso evitando a moeda de 0,10, olhou pra tabela com esperança de que por algum milagre a passagem estivesse 1 real mais barata e assim ele poderia comprar o tal sonhado maço de cigarros, e assim ele viu em linhas pequenas, abaixo da tabela um aviso:
“TODOS OS PASSAGEIROS TEM DIREITO Á UM SEGURO OBRIGATÓRIO NO VALOR DE 2 MIL REAIS EM CASO DE ACIDENTE * ”
O asterisco no fim da frase chamava atenção para uma outra linha ainda menor logo mais abaixo:
“* é direito do passageiro recusar a taxa do seguro incluso no valor da passagem”
Tommy olhou para o atendente e perguntou meio sem jeito:
- Quanto fica se eu recusar a taxa do seguro?
O atendente respondeu meio surpreso, como se aquilo nunca tivesse acontecido antes:
Dizem que quando a morte se aproxima você vê toda a sua vida passar diante dos seus olhos, Tommy acreditava nisso - ou pelo menos queria acreditar - deitado há duas horas naquela cama branca em um hospital público de Cerquilho, aquele quarto simples, apenas com uns poucos equipamentos velhos e mais duas camas vazias à sua direita, a luz do sol entrava por uma janela suja mais à frente à esquerda. Se é verdade o que dizem sobre a morte, então Tommy estava aliviado, pois aquele quarto só lhe lembrava um episódio na sua infância, quando ele fora submetido a uma cirurgia que ele próprio não entendia a razão.
Mas o alívio em relação à morte não amenizava em nada a situação, há coisas piores do que a morte, Tommy sabia disso, mas procurava não pensar, tentava ignorar o fato de que não podia sentir nenhuma parte do seu corpo, nem mesmo sentia o tubo de borracha que penetrava sua garganta adentro, também não podia se mover, nem mesmo conseguia falar, apenas mexia os olhos inspecionando os detalhes do quarto. Seu cérebro ele tinha certeza que estava funcionando muito bem, pois tinha plena consciência de tudo e podia lembrar-se de quase tudo.
Tommy tentava não pensar nas cenas terríveis do acidente que há poucas horas lhe deixara naquela situação, lembrava de cada detalhe, mas quando tentava se lembrar dos momentos antes do embarque, era como se não tivesse acontecido, como se simplesmente ele tivesse aparecido.. “dentro daquele maldito ônibus bem na hora que aquele enorme caminhão...” Tommy parou de pensar, não queria mais pensar nisso, pois todo esforço que fazia sempre trazia as imagens do acidente, assim Tommy começou a lembrar de coisas felizes como lembranças da sua infância, quando a vida era muito mais fácil, mas ainda assim ele ansiava em crescer e alcançar a maioridade, sabia agora que a tal maioridade não trazia vantagens alguma, ao invés disso era bem difícil, não havia nenhuma boa lembrança de sua curta vida adulta que valesse a pena lembrar naquele momento.
Tommy odiava hospitais (á muito tempo não entrava em um), porém, na sua infância com os constantes ataques de bronquite Tommy perdia grande parte da sua infância enfiado em hospitais, com crises respiratórias, aguardando em enormes filas, eram sempre hospitais públicos, a família de Tommy nunca tivera uma condição financeira favorável, talvez por isso ele odiasse hospitais, hoje em dia, a bronquite nunca mais aparecera, e além do mais Tommy tinha uma saúde de ferro, apesar da aparência magra e a alimentação desequilibrada, Tommy quase nunca ficava doente, seu único problema (e um dos grandes) era o cigarro.
Tommy era um dependente, fumava excessivamente, não suportava ficar sem cigarros, sabia que ia parar antes dos 30 anos, mas por enquanto nem pensava nisso, gostava de fumar quando esperava, fumava enquanto lia, enquanto andava longas distâncias, quando bebia café, um cigarro de manhã era a melhor maneira de começar o dia em sua concepção.
Tommy imaginou quanto tempo deveria esperar e pensou: “o que eu não daria por um cigarro agora?”
Essa frase, em seu pensamento, pareceu fazer eco, Tommy sentiu uma estranha sensação, fragmentos de imagens da espera na rodoviária começaram a surgir na sua mente, mas logo Tommy estava de novo se vendo dentro do ônibus, então pensou em tentar dormir um pouco, mas era impossível, estava desconfortável apesar de não sentir nada, além do mais, sua mente estava agitada demais, o sol já havia se posto e estava bem escuro, Tommy tentou acalmar a mente, não pensou em nada, após um tempo o sono foi chegando, fechou os olhos, mas ainda assim não conseguia dormir e logo percebeu que sua mente já estava pensando em tudo de novo, principalmente no acidente. Tommy abriu os olhos e começou a prestar atenção em coisas insignificantes, ficou tentando imaginar pra que servia cada um daqueles aparelhos na sua frente do outro lado da sala, desses aparelhos ele podia ver pouca coisa com a fraca iluminação azulada que entrava pela janela.
Capítulo 2
Tommy só percebeu que havia cochilado quando seu sono foi interrompido pelo barulho da porta se abrindo, a luz do quarto foi acesa, um assistente de enfermagem entrou na sala e se pôs ao lado da porta, em seguida o irmão de Tommy entrou apressado, com uma expressão de preocupação, Tommy reconheceu seu irmão se aproximando e aquilo foi a primeira sensação boa desde que acordou naquele hospital, se sentiu feliz e revigorado, Tommy não queria morrer.
Mexendo os olhos, acompanhava os movimentos de seu irmão que se agachou próximo a cama fitando o nos olhos e perguntou meio sem jeito:
- Você... Está bem?
Era inútil! Tommy não conseguia falar, entendia a pergunta, mas simplesmente não conseguia responder, seu irmão percebeu e continuou falando:
- Calma, cara! A gente vai cuidar disso. O médico disse que você só precisa fazer uma tal cirurgia amanhã e aí você vai voltar ao normal.. (o irmão de Tommy fez uma pausa), o único problema é que o médico disse que esta cirurgia só pode ser feita em um hospital particular...
Tommy se desesperou, sabia que sua família não teria dinheiro pra pagar uma cirurgia dessas, seus olhos arregalaram e encheram se d’água, o irmão do Tommy percebendo a situação tentou acalmá-lo:
- Tudo bem, tudo bem! Eu vou conseguir esse dinheiro, o médico falou que uma cirurgia dessas é cerca de mil reais, eu vou conseguir amanhã, eu prometo!
Após isso o irmão de Tommy se levantou depressa dizendo que tinha que ir, se afastou da cama e saiu da sala preocupado e arrependido por ter falado demais.
Capitulo 3
As horas passavam, Tommy via as sombras dos objetos mudarem de lugar lentamente, as nuvens se movendo no céu, Tommy ficou olhando pra uma dessas nuvens por muito tempo, talvez por horas, ele conseguiu ver vários desenhos se formando ali, por uns minutos Tommy apenas via a nuvem, como se nada mais existisse e ele estivesse flutuando bem mais próximo da nuvem agora, viu uma enorme beleza naquela nuvem, percebeu como ela estava longe e como era gigante, já era de tarde e a nuvem havia mudado de cor lentamente, assumia agora um tom rosado em cima e alaranjado em baixo, e o próprio céu tinha esse mesmo tom com um azul claro na linha do meio, Tommy pensou que nunca tinha visto o céu tão bonito, mas logo percebeu que a verdade é que ele nunca tinha olhado para o céu, nunca tinha prestado atenção, sua vida era uma correria, Tommy era cheio de grandes planos para o futuro, prestava atenção em coisas grandiosas, buscava coisas e feitos grandiosos, nunca tinha parado pra olhar pequenas coisas sem importância como uma nuvem no céu quando o sol se preparava pra se pôr.
Tommy desviou a visão da janela e olhou para a parede cinzenta a sua frente, em sua cabeça as idéias e pensamentos rodavam, fragmentos de lembranças, pensamentos de como poderia ter sido diferente, a esperança se esvaia, o desejo de fumar um cigarro oscilava, a frase “o que eu não daria por um cigarro” aparecia como uma voz dentro da sua cabeça, sua própria voz cada vez mais clara e mais próxima, numa dessas vezes ele se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura e perguntando pra si mesmo a mesma frase exagerada típica de um viciado, tentou se controlar, agora já percebia que estava suando um pouco e lagrimas saíam dos seus olhos, pensou em musicas animadas de bandas que ele gostava e esperava poder voltar a ver novamente em um show em alguma casa de shows desconhecida de São Paulo, pensava agora em todos os amigos e pessoas importantes, Tommy percebeu que a vida valia a pena, reclamava da vida constantemente e várias vezes dizia que daria até mesmo a vida por um cigarro, agora se sentia um idiota, queria poder viver pra dizer pra todo mundo o quanto gostava de viver, pra ensinar a todos o quanto a vida vale a pena, queria rever seus amigos e dizer pela primeira vez na vida o quanto eles eram especiais, isso era algo que ele também se arrependia, quase nunca falava o que sentia para os amigos, Tommy agora percebia que podia estar no fim dos seus dias mas tudo que podia contemplar era arrependimento, de repente parou de pensar em todas essas coisas negativas de arrependimento e fim dos dias, “não vou morrer!”, disse pra si mesmo, pensou em tudo que faria quando saísse dali, voltaria pra casa, pra sua antiga casa com sua mãe e seu irmão, pouparia dinheiro para eventuais emergências, pararia de fumar com certeza, isso parecia uma obrigação, Tommy não sabia bem porque, mas pensava pela primeira vez em parar de fumar, como se fosse uma coisa urgente que já deveria ter feito á muito tempo.
A última consideração sobre o dinheiro lhe trouxe uma idéia na cabeça, lembrou-se que todo passageiro vítima de acidente em ônibus de viagem tem direito á uma indenização, é um tipo de seguro obrigatório, isso lhe deu esperanças, mas porque então seu irmão ainda não recebera esse seguro? Teria resolvido todos esses problemas, e Tommy já estaria uma hora dessas repousando após a cirurgia em uma maca confortável em um hospital particular bem caro, Tommy chegou a imaginar lindas enfermeiras jovens em roupas justas lhe trazendo café da manhã e cigarros, mas nada disso tinha acontecido até agora, Tommy imaginou que com certeza sua família já teria procurado a empresa de viação exigindo os direitos, aliás a família de Tommy era verdadeiramente obcecada por indenizações, processos, seguros e todas essas coisas que poderiam lhes dar uma boa grana de uma hora pra outra, porém, nunca tinham conseguido ganhar nada em vários processos (as vezes, sem sentido) que tinham iniciado contra diversas empresas, Tommy lembrou que as grandes empresas sempre levavam a melhor e escapavam de alguma forma das obrigações.
Com esse pensamento a esperança se foi, provavelmente Tommy perdera o seguro por alguma brecha estúpida que a lei sempre deixa pra a classe dominante se aproveitar dos desfavorecidos, contudo, algo perturbava as certezas de Tommy, no seu subconsciente algo dizia que ele sabia muito bem porque o seguro não chegaria a suas mãos e também sabia porque seu irmão não havia voltado pra visitar ele... e nem voltaria.
Uma luz alaranjada entrava pela janela e a sala começou a escurecer, era a segunda vez que Tommy percebia o sol se pondo naquela sala, o mais deprimente é que não havia visto mais ninguém, nenhuma visita, apenas uma velha enfermeira que entrou algumas vezes na sala pra medir sua pressão e alimentá-lo, quanto a seu irmão ele entendia que não era possível que ele aparecesse por lá, pois naquele momento seu irmão certamente estava em algum lugar tentando conseguir o dinheiro pra tal operação, Tommy confiava em seu irmão acima de tudo, lembrou das vezes que seu irmão lhe ajudara e se sentiu um tanto inútil, sabia que se não fosse pelo seu irmão ele já estaria morto ou pior á muito tempo, lembrou da enorme divida e de todas as vezes que precisou de ajuda e seu irmão sempre estava lá, mesmo longe, do outro lado da linha atendendo uma ligação a cobrar e dizendo que iria buscar Tommy de moto, ou que iria emprestar o dinheiro que ele precisava.
Tommy dormiu com mais facilidade naquela noite.
Capitulo 4
Já era quase meio-dia e Tommy acordava de um pesadelo terrível, respirava agitado, as imagens continuavam passando na sua mente como um filme, era o acidente, era como se Tommy estivesse revivendo o acidente no ônibus em cada detalhe, os faróis do enorme caminhão se aproximando da sua janela, a buzina ensurdecedora, ferros se amassando, vidros quebrando numa barulheira infernal, seu braço preso, motores furiosos, imagens distorcidas, a estrada girava, por alguns momentos só se ouvia gritos e choros desesperados, depois tudo escurecia, e de repente Tommy já estava acordando naquele hospital.
Tommy afastou aos poucos essas imagens da sua mente, logo veio a vontade de fumar, aquele bom e velho cigarro acompanhado pelo café quando ele acordava, o que ele não daria por um cigarro? Tommy quase pensou nessa frase, mas de repente algo começou.Uma sensação nova começou nas pernas do Tommy, depois de tanto tempo sem sentir nada, Tommy percebeu um leve formigamento subindo pelas suas pernas, o formigamento avançava rapidamente, à medida que aumentava de intensidade e logo aquilo se tornou um inferno, todo aquele formigamento se transformou numa dor profunda e terrível, subia pelas suas pernas até seu pulmão, tomava também seus braços, Tommy ficou agitado, era difícil respirar, podia se ouvir as batidas do seu coração, alta, forte e rápida, Tommy perdia o fôlego, o ar não vinha, sentiu um frio profundo que lhe chegava até os ossos e ainda assim suava muito, seus olhos derramavam uma enxurrada de lágrimas e agora Tommy tinha certeza, ele estava morrendo, imagens começaram a aparecer na sua mente, como se passasse diante dos seus olhos, Tommy se viu com 7 anos brincando com seu irmão de se pendurar no cano aonde sua mãe amarrava o varal, numa das várias balançadas pendurado ali o pequeno Tommy não agüentou o próprio peso e escapou do cano, caiu, quase que flutuou como que em câmera lenta e quando suas costas iam atingir o chão outra lembrança saltou a frente, Tommy agora tinha 10 anos e estava olhando pela janela do seu quarto, era tarde da noite e o que Tommy via era seu pai com uma mala saindo de casa aos gritos com sua mãe e entrando no carro, o carro arrancou rua abaixo e quando Tommy se virou pra dentro do quarto, se viu com 11 anos chegando numa outra casa, junto com sua mãe e seu irmão mais velho, sua mãe chorava, um flash e outra lembrança veio a tona, Tommy estava bem mais velho agora, barba por fazer, sentado numa maca, uma garota na sua frente segurava seu nariz com uma ferramenta cirúrgica, o Tommy adolescente estava furando seu primeiro piercing, quando a agulha atravessou seu septo, uma outra lembrança, estava agora em um lugar lotado, as luzes piscavam, Tommy se via numa multidão de jovens se empurrando na frente de um palco aonde uma banda tocava agitada uma musica alta, essa lembrança foi sobreposta pela imagem do Tommy colocando umas roupas numa mochila, sua mãe ao lado chorava e incentivava, talvez o momento mais memorável da sua vida, o Tommy adulto estava saindo de casa, queria tentar a vida em outro lugar, sua mãe ao lado chorava e incentivava ao mesmo tempo, logo a imagem sumiu e Tommy se viu com a mochila nas costas descendo uma rua escura, querendo um cigarro, logo ele estava na rodoviária, esperava o ônibus pra São Paulo, era de madrugada, o sol ainda nem começara a nascer, a rodoviária quase vazia, Tommy olhava para os lados procurando alguém que estivesse fumando para pedir um cigarro, mas só havia uns velhos cochilando em um banco, Tommy olhou pra lanchonete da rodoviária, por trás dos vidros estava vazia com as luzes apagadas, Tommy pensou que assim que aquela lanchonete abrisse ele iria comprar um cigarro, mas logo lembrou que estava com o dinheiro da passagem contado e mais R$ 1,10, a imagem dele contando o dinheiro sumiu e veio a imagem da lanchonete e da bilheteria acendendo suas luzes, um homem tomava seu posto na bilheteria enquanto uma mulher varria a frente da lanchonete, Tommy ainda pensando em cigarro foi em direção a bilheteria, tirou o dinheiro trocado do bolso evitando a moeda de 0,10, olhou pra tabela com esperança de que por algum milagre a passagem estivesse 1 real mais barata e assim ele poderia comprar o tal sonhado maço de cigarros, e assim ele viu em linhas pequenas, abaixo da tabela um aviso:
“TODOS OS PASSAGEIROS TEM DIREITO Á UM SEGURO OBRIGATÓRIO NO VALOR DE 2 MIL REAIS EM CASO DE ACIDENTE * ”
O asterisco no fim da frase chamava atenção para uma outra linha ainda menor logo mais abaixo:
“* é direito do passageiro recusar a taxa do seguro incluso no valor da passagem”
Tommy olhou para o atendente e perguntou meio sem jeito:
- Quanto fica se eu recusar a taxa do seguro?
O atendente respondeu meio surpreso, como se aquilo nunca tivesse acontecido antes:
- Han.... fica 0,96 centavos a menos, senhor.
- Então vou recusar!
- Claro, preencha esse formulário.
O atendente lhe deu uma folha com várias lacunas pra preencher como nome identidade, CPF entre outros, Tommy preencheu apressado, assinou e devolveu ao atendente que já lhe entregava a passagem, Tommy deu o dinheiro e recebeu seu merecido troco, era o “milagre” que ele esperava, agora Tommy tinha R$ 2,06 no bolso, essas imagens se distorceram e foram sobrepostas pela imagem do Tommy entrando na lanchonete da rodoviária, nem disse “bom-dia”, encostou-se no balcão colocando a nota de 1 real amassada e as moedas sobre o vidro, o barulho interrompeu a leitura que a atendente fazia sentada atrás do balcão com um pequeno livro, ela se virou olhando as moedas, “me dá um maço de Hollywood, por favor!” Disse Tommy num tom imperativo.
A atendente lhe entregou o maço, Tommy agora estava andando na rodoviária, rasgando o plástico do maço e jogando no chão, encostou-se no parapeito, em frente ao lugar onde seu ônibus chegaria em cerca de 20 minutos, colocou um cigarro na boca com a mesma mão que segurava o maço e com a outra já arrastava o isqueiro pra fora do bolso de trás da calça, acendeu o cigarro, deu uma tragada, agora seus movimentos já eram mais lentos, colocou o isqueiro num bolso, o maço em outro, assoprou a fumaça azulada que se dissipou rapidamente no ar, encostou o antebraço no parapeito e deu outra tragada mais demorada, estava agora mais calmo e sentia que poderia esperar o ônibus por muitas horas com aquele maço de cigarros que ele trocara pelo seu seguro de acidente, soltou a fumaça lentamente no ar e perguntou pra si mesmo: “o que eu não daria por um cigarro?”.
- Então vou recusar!
- Claro, preencha esse formulário.
O atendente lhe deu uma folha com várias lacunas pra preencher como nome identidade, CPF entre outros, Tommy preencheu apressado, assinou e devolveu ao atendente que já lhe entregava a passagem, Tommy deu o dinheiro e recebeu seu merecido troco, era o “milagre” que ele esperava, agora Tommy tinha R$ 2,06 no bolso, essas imagens se distorceram e foram sobrepostas pela imagem do Tommy entrando na lanchonete da rodoviária, nem disse “bom-dia”, encostou-se no balcão colocando a nota de 1 real amassada e as moedas sobre o vidro, o barulho interrompeu a leitura que a atendente fazia sentada atrás do balcão com um pequeno livro, ela se virou olhando as moedas, “me dá um maço de Hollywood, por favor!” Disse Tommy num tom imperativo.
A atendente lhe entregou o maço, Tommy agora estava andando na rodoviária, rasgando o plástico do maço e jogando no chão, encostou-se no parapeito, em frente ao lugar onde seu ônibus chegaria em cerca de 20 minutos, colocou um cigarro na boca com a mesma mão que segurava o maço e com a outra já arrastava o isqueiro pra fora do bolso de trás da calça, acendeu o cigarro, deu uma tragada, agora seus movimentos já eram mais lentos, colocou o isqueiro num bolso, o maço em outro, assoprou a fumaça azulada que se dissipou rapidamente no ar, encostou o antebraço no parapeito e deu outra tragada mais demorada, estava agora mais calmo e sentia que poderia esperar o ônibus por muitas horas com aquele maço de cigarros que ele trocara pelo seu seguro de acidente, soltou a fumaça lentamente no ar e perguntou pra si mesmo: “o que eu não daria por um cigarro?”.