
Capítulo 1
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A sombra veio subindo pela Rua Circular, tornando as casas cinzentas, dando mais um toque de drama à ocasião, a enorme nuvem de chuva parecia saber do ocorrido. A sombra encobriu o amontoado de gente que se movimentava em frente à casa de Alex, alguns dispostos a ajudar, consolar, outros apenas curiosos querendo matéria para as fofocas que durariam meses, meses apenas, na Rua Circular nenhuma lembrança durava anos, tudo era logo esquecido ou aceito, todos se conformavam e voltavam às suas vidas. Mas o assunto em frente à casa de Alex era sobre uma lembrança, a lembrança de 36 anos atrás, quando Alex era criança, os mais velhos moradores da Rua Circular lembraram-se disso, eles mesmo invadiram a casa pra salvar Alex da ira do pai, uns minutos à mais e o velho João teria matado o próprio filho, "um velho de 48 anos, alcoólatra.." era o que todos diziam, muitos diziam também que o fato do Alex ter crescido tão revoltado era por causa da violência do pai. O velho João morreu no dia seguinte á esta surra, muitos disseram que foi castigo de Deus, foi atropelado por um carro que saía da Rua Circular e virava a esquina correndo muito no momento em que ele atravessava distraidamente. João estava indo até a padaria comprar cigarros, teria pedido para Alex comprar, se este não estivesse internado num hospital, todo enfaixado, obra-prima de sua violência do dia anterior.
Quando João deu essa surra em Alex, o herói do dia foi Rubens, o morador da casa da frente, um jovem estudante de advocacia que tinha 20 anos na época. Rubens estudava naquele fim de tarde como de costume, naquela tarde mais do que nunca, pois a prova do vestibular seria no dia seguinte, quando ouviu a gritaria da mãe do Alex, Rubens desceu a escada aos tropeços e passou pela cozinha como uma bala disparada em direção á "João Maníaco", era assim que Rubens chamava o seu "adorável" vizinho da frente, ele realmente não ia com a cara dele, ainda mais depois de um certo dia em que Rubens o viu roubando moedas de um morador de rua que dormia junto com o filho na calçada, Rubens impediu a ação, mas isso lhe garantiu o ódio eterno do vizinho.
Agora ele corria em direção a casa do João imaginando a desgraça, passou o braço por cima do pequeno portão e abriu o trinco, alguns vizinhos também já se aproximavam quando Rubens adentrou a sala, contemplou a cena e estremeceu, diante de tanta maldade, João batia no filho disposto a matar, a Mãe de Alex gritava em pânico, móveis revirados, na mão de João uma garrafa de pinga quebrada, era a arma contra o próprio filho, Rubens investiu contra João, bateu, derrubou, chutou com prazer, os outros vizinhos assistiam tudo paralisado, não se sabia o que era mais chocante, se eram as manchas de sangue pela casa, ou Rubens surrando o velho bêbado, ou talvez Alex imóvel no chão, talvez morto?
Rubens quase perdeu a razão, mas percebeu o que fazia, era desgraça demais pra um dia só, parou, respirou, um tempo pra organizar as idéias e gritou:
- Anda logo! Ajudem o Menino, chamem a ambulância, anda.
Rubens voltou pra casa já era noite, entrou deixando um rastro de água pela casa, seu pai estava sentado na velha poltrona do seu avô, quando viu Rubens todo ensopado com manchas de sangue na roupa, deu um pulo na poltrona.
- Calma, que o sangue não é meu, eu estou bem.. (Falou Rubens, já conhecendo o pai)
- Ufa... Que susto ce me deu, espera aí que eu vou pegar uma toalha, assim ce vai ficar doente, mas o negócio foi tão feio assim? O que aconteceu? (o pai do Rubens falava isso enquanto abria um armário e procurava a toalha)
- É... O João Maníaco ia matar o Alex se eu não tivesse chegado, mas pai... Eu dei uma surra e tanto nele viu... (Rubens falou isso com um sorriso sarcástico).
- Eee. Meu filho, você também né... Não precisava tanto, é louco pra arrumar confusão né? Tá... Também não posso falar nada, na sua idade eu também era assim! (o pai do Rubens falou rindo enquanto entregava a toalha), fez bem meu filho, amanhã a gente pega o safado, ele não vai a lugar nenhum, vamos processar o maníaco e mandar ele pro xadrez rapidinho, agora vai descansar, herói!
Assim era o pai de Rubens, sempre querendo usar suas habilidades do ofício, era um advogado dos bons, só que não era reconhecido. Só pegava casos pequenos de empresas e empregados desentendidos, maridos e esposas enfurecidas, mas bom pagamento nenhum dos clientes podia pagar, ele culpava a aparência e a localização do escritório, logo ele iria criar coragem e abandonar aquele lugar, alugar um desses escritórios enormes e confortáveis, e com garagem também, pois com um escritório desses ia precisar duma boa garagem pra abrigar os carrões importados dos novos clientes que viriam, mas hesitava em mudar de escritório, sentia insegurança, não teve coragem de tentar uma mudança, talvez em respeito ao pai que trabalhou ali até se aposentar, seu pai também fora um advogado, se aposentou e agora passa o dia inteiro dormindo, lendo ou assistindo TV trancado no quarto. Nem mesmo desceu pra olhar a bagunça na rua que ocorreu naquela tarde, provavelmente estava observando pela janela lá de cima enquanto o João espancava o filho.
Capítulo 2
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João perdeu o pai antes da adolescência, não que ele tenha se importado, quando isso aconteceu ele já era revoltado o suficiente, odiava o pai acima de tudo, quem viveu naquela época sabia que ele tinha motivos pra isso, a adolescência de João não foi nada fácil, dúvidas e mais dúvidas, revolta e mais revolta, sem um pai pra lhe ensinar os segredos da vida, também seu avô não estava presente, pois morreu muitos anos antes dele nascer. João também não tinha muito jeito com as mulheres, casou quase que por obrigação porque engravidou uma mulher que mal conhecia, dela nasceu o Alex, um bebê enorme, se dependesse de João ele teria morrido de fome, mas a mãe cuidava bem, todos diziam que o filho era só dela, os vizinhos também gostavam e cuidavam do bebê, até ajudavam a criá-lo, Alex foi crescendo e ficando gordo como o pai, não era nada de obeso, talvez um pouco acima do peso, mas já era suficiente pra ser o tema principal na escola, Alex não tinha amigos, na sala de aula todos gostavam de gozar da cara dele já que ele era o gordo filho do bêbado e chegava na escola cada dia com uma mancha roxa numa parte diferente do corpo, pelo menos os garotos não tinham coragem de bater nele, ".. coitado, nem precisa, o pai dele já faz isso todo dia..". Mas um dia, quando Alex tinha uns 11 ou 12 anos, uns garotos inventaram de atiçá-lo até ele reagir, não há dúvidas de que eles conseguiram, Alex reagiu, reagiu até demais, o arrependimento dos colegas não adiantou, expôs sua ira, mostrou o que aprendeu com o pai, imitou a violência de casa.
Alex expulso da escola, três colegas no hospital. Alex chegava em casa de tarde, já tremia, torcia para não encontrar seu pai, o que faria? Pensava em fugir, pensava em mentir, não adiantaria, era cedo demais pra estar chegando da escola, isso já seria suficiente para o pai, ele sempre batia primeiro e perguntava depois. Alex visualizava a cena, seu pai perguntaria porque estava chegando tão cedo, ele hesitaria, gaguejaria um pouco, sentia medo, mentia, seu pai saberia só de olhar nos olhos, ou talvez por não olhar nos olhos na hora da mentira, aí seria tarde demais, mais uma surra, e ia ser das piores. Alex encontrou seu pai sentado no sofá, dormindo, o braço escorado segurava a garrafa de pinga pendurada do lado do sofá, "nem dormindo o velho solta a garrafa.." pensou Alex. A TV ligada transmitia imagens de uma família feliz jantando, todos reunidos, “que linda ilusão..” pensou Alex, se perguntava se aquilo existia, odiava novelas, uma novela real era sua vida, mas essa não emocionava ninguém, ninguém prestava atenção, ninguém se importava e naquela hora estava pra acontecer um capítulo que ninguém perderia por nada. Alex foi entrando devagar, quando viu a garrafa escorregando, nem mais um passo, arregalou os olhos, a garrafa desceu, primeiro o barulho da garrafa quebrando ecoou, depois um cheiro de pinga barata tomou a sala, o velho João acordou dando um pulo e gaguejando coisas incompreensíveis, parou, apertou os olhos, olhou ao redor tentando entender o que passava, viu o Alex ali parado atrás do sofá, a cara de medo do Alex já dava idéia de coisa errada, João olhou pra garrafa quebrada em meio à poça de pinga, depois olhou pra janela e viu o céu amarelado de fim de tarde, se virou olhando para Alex, e gritou com a voz suja:
- Já em casa essa hora? E essa cara aí de quem aprontou? o que que ce fez dessa vez hein? Seu merda!
Uns minutos depois, a mãe do Alex saía do quarto correndo, temendo a desgraça que encontraria na sala, já tinha acordado com o barulho da garrafa quebrando, mas isso era normal de se ouvir naquela casa, mas os gritos de seu filho, ela tinha que atender, normalmente ela ficava de olho para o João não matar o Alex, mas aquela hora era estranho pois Alex deveria estar na escola.
Capítulo 3
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Alex recebeu a noticia da morte do pai no hospital, não derrubou nenhuma lágrima, sentia-se vingado, estava rindo por dentro, pensava em apertar a mão desse motorista que fez uma obra tão boa pra humanidade, saiu do hospital umas semanas depois com cicatrizes que jamais sumiriam, saiu na cadeira de rodas empurrada por sua mãe, na porta do hospital encontrou o Rubens, seu salvador, mas não se mostrou nem um pouco agradecido, "acho que ele não lembra...", disse sua mãe, mas Alex lembrava muito bem, ele apenas não sabia demonstrar esse tipo de coisa, estava agradecido, mas não era legal com ninguém, odiava quase todas as pessoas, conhecidas ou não.
Alex foi crescendo e esse ódio não melhorou em nada, sentia o peso no olhar das pessoas, na rua, todos apontavam pra ele, falavam dele, tinham pena, isso deixava Alex ainda mais furioso, não tinha amigos porque não conseguia ir falar com ninguém, sentia vergonha, raiva, medo, inveja de todos, até por pessoas de longe que ele nunca tinha visto na vida ele sentia o mesmo, achava que todos conheciam sua história. Aos 13 anos começou a beber no "Bar Circular" que ficava a uns quarteirões de sua casa. Na primeira visita o atendente do bar o recebeu como recebia seu pai, Alex pediu uma dose, o filho do dono do bar que passava um pano no vidro do freezer atrás do balcão comentou baixinho:
- Eita, primeiro o pai bêbado vem aqui, bebe um monte e fica devendo, agora é o filho...
Alex ouviu isso e o fitou com raiva.
O dono do bar bem que pensou em cobrar a dívida, mas teve pena de Alex, pensou: “o coitado do muleque já tem problemas demais pra assumir a dívida do pai bastardo”.
Alex Arranjou um emprego numa oficina mecânica no início da Rua Circular, o dono da oficina, ex-patrão de seu pai, foi até á casa de Alex oferecer o emprego quando ele tinha uns 17 anos, Alex no início odiou a idéia, mas logo se conformou, pelo menos teria dinheiro pra comprar bebida, além do mais o dono lhe ensinaria tudo e ele nem mesmo precisaria ver os clientes, ficaria só lá no fundo consertando carros.
Alex se casou quando tinha uns 36 anos com uma mulher que ele conheceu num bar, uma noite que estava muito bêbado, saiu com ela e a engravidou, 9 meses depois, nascia Denis.
Capítulo 4
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Uma garoa fina começou a cair, logo depois uma trovoada e a chuva caiu barulhenta contra o asfalto da Rua Circular, finalmente os curiosos saíram do plantão em frente a casa do Alex, a última pessoa a sair tinha sido a primeira a entrar, era Paulo, o vizinho, fechou o portão e atravessou a rua correndo, entrou em casa todo molhado. Rubens, seu pai, estava sentado na poltrona lendo um jornal e levou um baita susto quando Paulo entrou puxando a camisa ensopada pra evitar o contato frio com o corpo, Rubens se levantou soltando o jornal e perguntou:
- O que aconteceu lá, Paulo?
- Eita, o negócio foi feio, o Alex Maníaco ia matar o Denis se eu não tivesse chegado á tempo, esse cara não presta, o senhor acredita que outro dia eu vi ele roubando aquele cara que mora na rua com o filho? Muito safado, os coitados dormindo ali na calçada...
Pouco depois Paulo tomou um banho e foi dormir, no dia seguinte, quando foi abrir a porta pra sair e pela janela da sala viu o Alex abrindo o portão do outro lado da rua, esperou, não queria encontrar com ele, Alex abordou um garoto que passava pela rua e falou:
- Oh, moleque! Vai lá comprar cigarro pra mim, eu te dou 50 centavos, vai!
O garoto parecia assustado e com medo de Alex, falou que não podia porque tava indo pra escola, Alex resmungou e falou:
- Tá bom, sai daqui, eu mesmo compro essa merda.
Assim Alex desceu a Rua Circular, mancando, cheio de hematomas no rosto, Paulo pensou: "safado, hoje você vai em cana, meu pai vai dar um jeito nisso". Paulo esperou mais um tempo, abriu a porta e saiu para fazer a prova do vestibular.