
Incontáveis anos se passaram e Adilson apenas conversava sozinho ou com o fantasma imaginário do seu pai, vez por outra conversava com sua vara de pescar. Desde que seu pai se fora ele não via ninguém, nem sentia vontade de conversar, por ali não moravam outras pessoas, eram apenas Adilson e o velho da colina. Ah sim, o velho da colina, era como Adilson chamava o velho que sentava todos os dias (ou quase todos) no alto da colina e ficava observando a estrada. Adilson passava pra ir pescar e o via ao longe, todos os dias no mesmo horário, "que vida idiota esse cara leva? Todos os dias a mesma merda, sentado aí no mesmo lugar olhando pra mim, qualquer dia eu subo a colina e vou perguntar o que ele faz da vida.."
Os dias passavam e Adilson quase sempre olhava pra ele e dizia pra sua vara de pescar: "na volta eu vou subir pra falar com ele, agora vamos correr pro lago senão fica tarde pra pescar.."
Adilson pescava como seu pai lhe ensinara desde pequeno, naquele lago que ficava perto de casa, todos os dias ele acordava cedo e ia descendo a estrada de costas para o sol nascendo, olhando pro chão e observando a estrada clareando e sua sombra diminuindo sobre seus pés, chegava no lago pescava por duas horas e voltava pra casa já sentindo o sol queimando a pele, na volta o velho também estava sentado ali na colina, tinha começado a aparecer por ali desde que o pai do Adilson se fora, e dali pra cá era todos os dias, talvez nem fosse todos os dias, Adilson nem prestava mais muita atenção na colina, mas todas as vezes que desviava o olhar do chão pro alto da colina lá estava o velho, na mesma posição em sua rotina que Adilson ás vezes se negava a acreditar que alguém pudesse viver assim.
"Na volta eu vou lá falar com ele, ás vezes sinto vontade de conversar com alguém"
Mais um dia começava e Adilson descia a estrada pra pescar.
Num dos dias mais frios, Adilson acordou no mesmo minuto, vestiu as botas como de costume e saiu pra pescar, o céu carregado de nuvens fez com que o caminho até o lago permanecesse escuro, Adilson descia a estrada olhando pro chão mesmo sem ver sua sombra projetada, era um dia bem diferente aos olhos de Adilson, mas uma coisa permanecia: o velho da colina, Adilson se espantou com a imagem, era um escuro quase absoluto, o sol encoberto pelas nuvens projetava uma luz amarelada e fraquíssima na colina, mas incrivelmente o velho estava sentado ali no mesmo lugar, ignorando o frio e o escuro, os olhos fixos na estrada ao pé da colina, observava..
Ainda estava escuro quando Adilson, sentando com dificuldade numa pedra á margem do lago, sentiu seus pés deslizarem pra trás e seu corpo cedendo bruscamente, o rosto encontrou o lodo no chão e o joelho esquerdo se abriu num corte ao se chocar na pedra, o cesto de peixes foi rolando até a água e ficou boiando lentamente.. "que cena estúpida.." As solas da bota já não davam mais conta da segurança e isso rendeu um corte no joelho e uma cara pintada de lodo escuro. Sentou se ali mesmo, passou os polegares nos olhos e olhou ao redor, na pedra uma mancha vermelha escura desenhava uma estranha forma de arte abstrata, inicialmente não sentiu nada, nem raiva nem dor física, nem vergonha e nem vontade de rir, não havia ninguém vendo, nem ninguém pra contar a história, o joelho nem doía tanto e o que restava fazer era simplesmente levantar e continuar a vida, foi levantando tateando o chão e de repente a luz começou a surgir lentamente, mas visivelmente prosperando, o sol ia se libertando das nuvens e finalmente pintava a paisagem de amarelo, Adilson viu as imagens tomando mais claridade, vários rastros do recente acidente, a arte abstrata estampada na pedra agora era de um vermelho vivo e brilhante, ao pé da pedra, abaixo da figura estava sua vara de pescar, ponta meio enterrada no chão, o nylon todo embaraçado indo até outro pedaço um pouco longe, era algo pra se preocupar: sua vara de pescar estava quebrada, nem joelho doendo, nem lodo entrando nos olhos, a tragédia estava ali, formando um estranho quadro junto com a mancha vermelha na pedra, sua vara de pescar, eterna companheira estava quebrada e ao olhar já teve certeza que não saberia consertar...
Desnorteado, nem se limpou, nem mesmo se lembrou da cesta de peixes, foi andando pra estrada olhando a vara partida nas mãos sentindo um nó na garganta e o gosto das lágrimas que já escorriam pelo rosto, andava sem olhar o caminho e na verdade nem precisava, ele já estava tão acostumado que podia fazer o percurso de olhos fechados, continuou andando e ao passar pela colina tentou evitar olhar, não queria ver ninguém e certamente o velho da colina estaria lá, mas de súbito bateu uma curiosidade e ele lentamente olhou para o alto da colina, e óbvio, lá estava o velho sentado, mas não foi isso que mais surpreendia na visão, o velho sentado ali nada tinha de novo, mas o que havia de tão absurdamente diferente e mudado era o horizonte atrás do velho, acima da colina, era outro horizonte que Adilson nunca viu, a luz alaranjada do sol pintava metade do horizonte e ia se juntando com um tom rosa que se tornava roxo, azul e depois azul escuro, olhando pra direita o Sol estava tão baixo como Adilson nunca imaginou que poderia estar, parecia tocar o horizonte e podia olhar pra ele sem sentir seus olhos queimarem.
"o que há no horizonte?.. que dia diferente é hoje?.."
Desde que Adilson colocou os pés fora da cama que estranhas coisas aconteciam, estranhas demais que ele jamais imaginara que poderia acontecer com uma pessoa, e agora até a natureza parecia estar mudada, continuou andando pra casa pensando o que faria em seguida.. afinal tudo estava fora dos planos, não pescara e voltava pra casa num horário totalmente diferente, razão pela qual talvez a paisagem se mostrava tão transformada, abriu a porta de casa, o ar era úmido e quente, mais uma nova sensação, o cheiro de podridão emanava mais forte por de trás da porta trancada do quarto do seu pai, ele pensou em entrar lá para procurar alguma coisa que servisse pra remendar a vara quebrada, ou talvez pegar a vara que era do seu pai que certamente estava lá dentro, mas a idéia era ousada demais, nunca tinha entrado no quarto do pai e depois que seu pai morrera isso não mudou, a porta ficou trancada por dentro e apesar de saber da existência de uma chave reserva no armário da cozinha, Adilson nunca se interessou em entrar lá, mas isso era antes...
"o dia hoje está estranhamente diferente.."
Parou á frente da porta e pensou por uns minutos, Adilson segurava a grande chave antiga pendurada na mão direita, aproximou a mão na fechadura, todos os movimentos eram devagar e cautelosos por se tratar de movimentos totalmente inéditos e decisões incertas, aumentava o cheiro de podridão, o cheiro não era sensação inédita, Adilson sabia do que se tratava, a chave girou com dificuldade e um clique ecoou como se tivesse quebrado alguma coisa, no entanto a porta se abriu quase sozinha, rangendo e revelando a cena guardada por trás da porta e cortinas fechadas por incontáveis meses, anos, décadas... Adilson não sabia ao certo quanto tempo havia se passado desde que seu pai morrera, mas a ultima lembrança que ele tinha era do pai doente andando com dificuldade e trancando a porta por dentro dizendo que era hora de partir, Adilson era jovem, mas entendeu o recado, chorou e aceitou o fato de que seu pai morrera naquela noite, não precisava de provas maiores, nem mesmo de provas visuais como essa que se desenhou diante dele nesse momento em que ele empurrou a porta e quase vomitou com a intensidade do cheiro que tomava o quarto, o ar pesado, ratos de vários tamanhos correram de todas as parte do chão, alguns desciam ou caíam da parede, todos íam pra baixo da cama ao mesmo tempo como se fazendo um movimento ensaiado, uma espécie de coreografia desviando das grossas teias de aranha que se estendiam do teto até o chão e Adilson imaginou que se não fosse pelo nojo de dar mais um passo ele poderia usar aquelas teias pra remendar sua vara de pescar, mas a ânsia aumentava, ele corria os olhos pelos detalhes do quarto procurando a vara de pescar do seu pai e logo a avistou, estava num lugar um tanto inconveniente, sobre a cama, mais precisamente com o seu pai, nas mãos dele, ou daquilo que um dia fora seu pai, agora restava sobre a cama um esqueleto putrefato com umas roupas sujas de várias manchas escuras que se estendiam até a cama, a mão esquelética fechada segurando a vara de pescar causava uma estranha ironia naquela visão caótica que não parecia perturbar Adilson, nada daquilo era surpresa pra ele exceto a vasta fauna de pequenos seres que habitavam todos os cantos do quarto, e o ar ia se tornando cada vez mais insuportável, era como se o simples fato de respirar ali já poderia matar rapidamente, levou a palma da mão ao nariz e boca e saiu andando pra trás, ganhou a sala e já conseguia respirar melhor, saiu de dentro da casa e finalmente.. ar puro.
Adilson ainda levava a vara quebrada nas mãos quando desceu a estrada e foi em direção ao lago novamente, percebia agora que era o único lugar pra onde poderia ir, na verdade era o único lugar que conhecia fora sua casa, se pelo menos pudesse pedir ajuda pra alguém que tivesse um jeito de arrumar a vara de pescar.. "Mas quem poderia?.."
E a colina surgiu a sua frente, lá havia alguém além dele num raio de quilômetros: O velho da colina.. Sentado no mesmo lugar como já era de se esperar, Adilson olhou para ele que agora parecia estar sorrindo, não era hora de parar pra pensar no que deveria ser feito, então desafiando costumes de uma vida inteira Adilson começou a subir a colina, e a cada passo ia se aproximando do velho que permanecia imóvel como que esperando ansioso, com aquele sorriso cada vez mais evidente no rosto, o nervosismo de Adilson aumentava.
O que diria? Como o velho reagiria? Estava chegando perto, mais uns passos e Adilson viu que havia algo escrito na camisa do velho, alguma marca de qualquer empresa que Adilson obviamente nunca tinha ouvido falar, mais uns passos, agora encarando o velho nos olhos e de repente algo pareceu estar terrivelmente errado naquilo tudo, Adilson desacelerou o passo, hesitou, mas continuou os passos lentos até paralisar boquiaberto diante do fato mais inacreditável que aquele estranho dia poderia reservar: o velho, eterno observador que eram como olhos da colina sobre a rotina mecânica de Adilson, tal rotina que ele próprio não percebia ao rir do fato de todos os dias ver o velho sentado ali e achar que este homem na colina vivia a vida e a rotina mais estúpida que alguém poderia suportar, não percebia que ele também passava por lá todos os dias no mesmo horário e por isso era capaz de percebê-lo, e num único dia que sua rotina fora quebrada tudo parecia desconfortavelmente diferente aos seus olhos, mas ainda assim algo não mudou: ele, o velho da colina, todos esses anos repousou ali intacto e Adilson percebia que não poderia ser diferente, já que agora subindo a colina percebia o fato: o velho sentado no alto da colina tratava-se na verdade de uma placa, não passava de uma peça de ferro indicando o caminho de uma trilha de mochileiros que levava até algum acampamento perto dali, aos pés da placa o chão era batido como se passasse várias pessoas por lá todos os dias, Adilson sentiu agora que a vida lhe escapava futilmente todos os dias, será que ainda havia tempo pra viver? Quanto tempo tinha? Pra onde iria? Olhou pra imagem do velho sentado que agora parecia estupidamente sem vida, uma seta aos seus pés indicava o caminho pela trilha que ia até mais a frente e depois subia a colina até o outro lado.
Seguiu a trilha com a visão até encontrar o horizonte no topo da colina que novamente se apresentava como um horizonte totalmente novo e promissor, abriu as mãos deixando cair os restos da vara de pescar que agora pareciam sem valor e talvez até representasse a sua perdição, não se conformaria em ter apenas a vara nas mãos até o fim da vida como fizera seu pai, já não podia mais admirar seu pai que agora parecia a lembrança de alguém covarde demais pra se arriscar a subir uma colina sem saber o que tem do outro lado, ou ir até além do lago ou seguir a estrada até o horizonte só pra ver aonde vai dar. Adilson foi subindo a trilha, o topo se aproximava, o coração batia acelerado pela emoção da eminente descoberta e ao ganhar o topo viu o outro lado da colina, paralisou diante da visão de um mundo novo que se estendia diante dos seus olhos, avistou aos pés da colina pequenas barracas de acampamento, pessoas sentadas conversavam e tiravam fotos, na água um grupo de garotas brincava com uma bola colorida e uma delas avistou Adilson parado no alto da colina e acenou para ele, nesse momento todos se viraram e viram Adilson, alguns faziam gestos convidando-o a se aproximar, Adilson hesitou mas logo não sentiu mais medo pois ao olhar lá longe percebeu que havia mais um horizonte totalmente novo pra ele, e a sua direita já era outro... e a esquerda mais um..